Em seu sexto livro, “Rua de dentro” (Record), Marcelo Moutinho volta seu olhar para personagens e paisagens menos visíveis da cidade: a mulher trans de Oswaldo Cruz que quer se tornar advogada; a velhinha que apalpa sua coleção de sacolas plásticas enquanto devora o almoço no restaurante a quilo; o menino “do asfalto” que sobe o morro para o aniversário do amigo da favela; a militante de aluguel que abana a bandeira política da ocasião, sonhando conseguir pagar os boletos. Mais do que mirar em personagens das margens, imersos em suas miudezas corriqueiras e na poesia que mora em suas “vidas comuns”, Moutinho reafirma a grandeza de outros pequenos: a dos contos. Neste livro, ele comprova e amplia um amadurecimento narrativo conquistado no título anterior, o premiado “Ferrugem” (Record) – as explicações oriundas do jornalismo, sua primeira formação, deram lugar a uma bem-vinda opacidade, e ela banha personagens e desfechos. O escritor mostra ainda que o conto, muitas vezes desprezado pelo mercado editorial e pela grande imprensa, é o gênero em que a literatura brasileira brilha mais forte – como o sol que acorda os subúrbios para suas maravilhas corriqueiras. Nesta entrevista, Moutinho fala da gênese de “Rua de dentro”, da vida por vezes vertida em ficção e dos projetos futuros.
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O título do livro parece jogar com um ambiguidade. ‘Rua de dentro’ é ao mesmo tempo uma rua que deriva de uma rua principal – esta geralmente uma fronteira entre duas regiões importante de um mesmo bairro – e também uma rua por dentro, isso é, uma cidade que infiltra as subjetividades. Além disso, a foto de capa atiça a memória com um piso de caquinho, típico de um quintal suburbano – que faz a extensão da rua nas casas e vice-versa. Acho que o início de conversa poderia ser por aí, das escolhas temáticas e de personagens que fazem deste livro uma obra sobre as bordas da cidade.
MARCELO MOUTINHO: Sim. No primeiro sentido, o título faz referência ao recorte feito quanto aos personagens do livro. Assim como em “Ferrugem”, meu trabalho anterior, os contos se passam majoritariamente no universo da classe média baixa, e buscam destacar personagens da cidade que costumam estar à sombra dos holofotes. Uma mulher trans que se divide entre a universidade e encontros sexuais nos quais defende algum dinheiro, a garota moradora do subúrbio que sonha ser dentista, o segurança de estádio de futebol, uma costureira… São as chamadas “pessoas comuns”, colocadas aí muitas aspas, inclusive porque a perspectiva de “Rua de dentro” é iluminar suas vidas para além dessa existência aparentemente ordinária. Quanto ao segundo sentido do título, lembro uma das epígrafes, versos de um poema do Ferreira Gullar que dizem: “A cidade está no homem / quase como a árvore voa / no pássaro que a deixa”. Porque, sim, a experiência da vida em sociedade deixa marcas íntimas em nós, as tais ruas “de dentro” que passam a nos constituir.
Como foi a pesquisa para o conto “Purpurina”? E como foi construindo as escolhas que tiram sua personagem principal de uma zona de estereótipos?
MOUTINHO: A pesquisa se baseou na leitura de estudos de antropologia urbana sobre a vida das mulheres trans que trabalham com a prostituição e também em entrevistas. Tenho amigas trans e conversei muito com elas, que chegaram a ler o conto depois de finalizado. A preocupação era fugir dessa zona de estereótipos, mas igualmente que a pesquisa não solapasse a história ficcional. Ao criar uma personagem dividida entre a rotina dos programas sexuais e da faculdade de Direito, busco enfocar tanto a questão da discriminação – que praticamente obriga a mulher trans a se prostituir, já que costuma vedar seu acesso a outros ofícios –, quanto a quebra dessa premissa, inclusive porque elas vêm, com muito esforço e coragem, e à revelia do péssimo tratamento que costumam receber da sociedade brasileira, enveredar por caminhos diferentes. Quero tratar com naturalidade uma mulher trans advogada, porque não deveria haver nada de estranho nisso.
Walter Benjamin escreveu certa vez que o escritor deve andar pela cidade como se estivesse numa selva. Ele se referia à importância de aguçarmos os sentidos. Numa selva, caso isso não aconteça, possivelmente morreremos. Já no espaço urbano, muitas vezes desenvolvemos uma espécie de cegueira, anestesiados que estamos pelas mesmas paisagens, os mesmos estímulos. A observação do outro, sobretudo daquele que é diferente de nós, é fundamental para a criação literária.
Nos dois primeiros contos do livro, temos a forte presença de mães ausentes – protagonistas com mães mortas. Até que ponto isso ajudou na superação da morte de sua própria mãe, Margarida, que morreu de forma abrupta há 3 anos?
MOUTINHO: No conto “Purpurina”, a mãe aparece como a figura mais compreensiva, dentro do núcleo familiar, quanto à decisão do menino em transformar seu corpo. Porque em geral é assim mesmo. As reações mais violentas vêm do pai que, encapsulado em seu machismo, não admite que o filho ganhe formas de mulher e, pecado dos pecados, faça sexo com homens. A morte da mãe entra na história muito mais como um recurso dramático para destacar a relação pai-filha. No outro conto, “Um dia qualquer”, a alusão à partida trágica da minha mãe é consciente. No poema “Funeral blues”, diante da morte de uma pessoa querida, o Auden escreve: “Que parem os relógios, cale o telefone / jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais, / (…) Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, / escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu”. É esse o desejo de quem enfrenta a dor da perda, mas as coisas não são assim. A padaria continua abrindo, os boletos chegam igualmente e, pior, é preciso resolver questões burocráticas em cartórios, funerárias, cemitérios. O conto fala um pouco desse sentimento, traduzido pelo narrador na expressão “normalidade insuportável”. Não sei dizer se escrevê-lo ajudou na superação da morte, até porque acho que a gente nunca supera totalmente a morte da mãe, ou do pai. O fazemos é tocar a vida à frente, porque não tem outro jeito.
A dupla seguinte de contos, “Memória da chuva” e “Militante”, também opera numa reversão de estereótipos, estes nascidos da visão uma esquerda bem intencionada e/ou elitista a respeito, respectivamente, da vida em uma favela, e do trabalho como “militante de aluguel”. O personagem das margens da cidade ainda é para você um desafio como escritor? E para nós, oriundos de uma classe média progressista, como cidadãos?
MOUTINHO: Todo personagem é um desafio, mas penso que uma das grandes capacidades do escritor de ficção é a de ser outro, ou outra, no corpo da história que narra. A pesquisa e as entrevistas podem ajudar muito nesse processo. Mas tão importante quanto elas é a vivência das ruas – e quando falo em rua, me refiro à cidade de forma ampla, em suas diferentes regiões, não apenas ao estreito do nosso bairro. O (filósofo) Walter Benjamin escreveu certa vez que o escritor deve andar pela cidade como se estivesse numa selva. Ele se referia à importância de aguçarmos os sentidos. Numa selva, caso isso não aconteça, possivelmente morreremos. Já no espaço urbano, muitas vezes desenvolvemos uma espécie de cegueira, anestesiados que estamos pelas mesmas paisagens, os mesmos estímulos. A observação do outro, sobretudo daquele que é diferente de nós, é fundamental para a criação literária. E a rua é o lugar onde a gente encontra o outro.
Vivemos uma época em que a pressa impera, e o tempo da literatura é outro. Um autor vai sendo construído à medida que escreve seus livros, e sua voz ganha apuro.
“Memória da chuva” condensa muito bem outras duas características do livro – o silêncio como “fala”, como informação, e os desfechos em aberto. Esse grau de opacidade, que deixa a narrativa sob uma espécie de névoa, foi a meu ver uma conquista de seu livro anterior, Ferrugem, radicalizada, no melhor dos sentidos, em Rua de dentro. Foi uma tarefa árdua se livrar da naturalidade explicativa do jornalismo?
MOUTINHO: “Rua de dentro” é meu sexto livro. Vivemos uma época em que a pressa impera, e o tempo da literatura é outro. Um autor vai sendo construído à medida que escreve seus livros, e sua voz ganha apuro. Então vejo essa marca apontada por você como algo que resulta de uma caminhada de quase vinte anos, nos quais algumas características foram ficando para atrás – entre elas o flerte com o modo de registro do jornalismo –, e outras foram surgindo. A “opacidade” acaba por dar maior participação ao leitor, ele pode completar os espaços vazios com sua própria experiência, com sua particularíssima fruição estética daquele conto. Se a luz é intensa demais, termina por solapar a zona de penumbra que busco no texto ficcional.
De maneiras muito distintas, os contos “Ocorrência”, “Cheiro”, “Retrós e linhas” e “Endless love” também falam de amor transformado em desamor. Esta dor é o terreno mais fértil da literatura, especialmente para as histórias curtas?
MOUTINHO: Não diria que é o “mais” fértil, mas é bastante. Para a literatura, não só nas narrativas curtas, e da arte em geral. Porque é uma dor demasiadamente humana e não raramente desabrocha em mágoa, outro campo muito fértil.
“Endless love” traz o personagem Vidal, enfermeiro gente boa e passional que escuta as agruras de um taxista enquanto tenta chegar a um almoço entre amigos no Largo da Prainha. Vidal parece uma homenagem enviesada ao também escritor Raphael Vidal, dono do bar e espaço cultural Casa Porto, que fica no Largo da Prainha. No seu processo criativo, como ocorre este tipo de apropriação e de travessia entre realidade e ficção?
MOUTINHO: Gosto de inserir locais da cidade real na cidade ficcional, de modo a transformar as duas numa coisa só. E também tenho buscado inscrever, no texto literário, alguns espaços de pertencimento, como a mencionada Casa Porto. É uma forma de mapear a cidade para além dos cartões postais e de suas imagens-clichê. Lembro do dia em que uma leitora do “Ferrugem” veio comentar, espantada e ao mesmo tempo feliz, que nunca teria imaginado encontrar a Polo 1 num livro de ficção. A Polo 1 é uma galeria que fica na Estrada do Portela, em Madureira. Faz parte do cotidiano de milhares de pessoas. Mas é o tipo de espaço que, com algumas exceções, a literatura brasileira contemporânea costuma desprezar, em nome de referências mais conhecidas, ou mesmo de uma espécie de alergia à chamada “cor local”. A “cor local” é parte fundamental dos meus contos, inclusive porque a intenção é lançar luz sobre esses lugares invisibilizados.
Apesar de narrados pela voz ilusoriamente neutra da terceira pessoa, “Fada do dente” e “Nota dez” são histórias inundadas pelas ocorrencias aparentemente triviais da infância e da adolescência, mas que podem se transformar em grandes traumas. Esta também tem sido uma grande formulação na historia da literatura – entender o crescimento-amadurecimento como um acumulo de nossas dores. Para a sua literatura, esta tem sido uma via importante?
MOUTINHO: Sim, e desde o primeiro livro. O universo da infância é riquíssimo, talvez porque seja um momento em que o olhar para o mundo é quase virgem, mais suscetível a descobertas, e também a pequenas ocorrências que ganharão, no futuro, uma dimensão inimaginável. Num de seus poemas, o Robert Creeley escreveu que “dor é uma flor como aquela, / como esta, / como aquela, / como esta”. A gente passa a vida colhendo essas flores, mas aquelas colhidas na infância ficam impressas em nós de maneira mais profunda.
“Comida a quilo” é o conto mais radical do livro em termos formais – com o fluxo ininterrupto da linguagem oral e do diálogo divergente entre dois atendentes de restaurante traçando a personalidade, a história e as acoes da protagonista. Também é talvez a história que faz uma outra síntese possível do livro, pela alta voltagem de solidão, da miscelânea contida no cardápio e na própria existência da comida a quilo, na aura de refugo, de sobra e também de estranheza e repulsa que cobre a personagem principal. Para narrar a cidade é preciso estar atento aos seus restos?
MOUTINHO: A ideia foi justamente emular, no registro formal, a lógica caótica do restaurante de comida a quilo. A solidão da senhora que frequenta o restaurante diariamente quase berra, mas é impossível ouvir esse grito em meio à algaravia ali instalada. Esse conto talvez seja o que melhor espelha o que chamo de discurso da cidade, a barafunda de signos – sonoros, visuais, escritos – que diariamente o espaço urbano erige. E uma cidade se define também por seus refugos.
A pergunta que um contista mais escuta ao longo da carreira é: ‘E aí, quando vem o romance?’. Como se o gênero conto fosse menor, um estágio até o escritor enfim virar ‘adulto’.
Em “Oxê” e “Vanessa”, temos, respectivamente, a transformação de um grande trauma no imaginário nacional (a derrota por 7 a 1 na Copa de 2014) e de uma mazela ao mesmo tempo aguda e crônica do Rio de Janeiro (as balas “perdidas” ceifando vidas jovens) como um pano de fundo que é também motor dos acontecimentos. O que a História precisa perder – ou ganhar – para se transformar nas histórias da ficção?
MOUTINHO: Esse olhar para o “pequeno”, para a historia miúda que corre em meio aos grandes fatos, sempre me interessou. E a experiência de ter passado quatro anos escrevendo crônicas semanais o tornou mais agudo. Lembro do Otto Lara Resende contando que, durante uma greve geral, o amigo Rubem Braga lhe telefonou, convidando-o a ir ao Bar Luiz. “Vamos ver a crise de perto”, propôs o Rubem. Ao cronista, interessava mais o impacto da crise no âmbito individual, das pessoas em seu cotidiano. É a perspectiva da vida ao rés-do-chão, para evocarmos a expressão do Antonio Candido. Para o segurança gay que trabalha no célebre jogo do 7×1, em “Oxê”, a dor não vem da goleada sofrida pelo Brasil, e sim do ataque homofóbico que sofre. A bala que atinge a menina, para muito além de se somar à estatística, é a morte de uma vida cheia de sonhos, afetos, expectativas. Acredito que, para se transformar em relato ficcional, a História com agá maiúsculo precisa ganhar rosto, respiração.
O Brasil e a América Latina sempre foram um campo extremamente fértil para os contos. Que autores foram o seus primeiros espelhos?
MOUTINHO: Dentro do gênero conto, Franz Kafka e Clarice Lispector, a quem cheguei por intermédio dos livros do Caio Fernando Abreu. Como não sou oriundo de uma família letrada – meus pais eram comerciantes do subúrbio do Rio –, as primeiras incursões pela literatura se deram de modo bastante intuitivo. Depois, fui ler outros grandes contistas brasileiros, como o Murilo Rubião, a Lygya Fagundes Telles, o Antonio Carlos Vianna, o Luiz Vilela e o Sergio Sant’Anna.
Apesar desta imensa tradição, o conto brasileiro ainda tem dificuldade de encontrar seu lugar nas premiações, no posto de carro-chefe das editoras, sobretudo na visibilidade na chamada grande imprensa. Qual é sua explicação para isso?
MOUTINHO: A pergunta que um contista mais escuta ao longo da carreira é: “E aí, quando vem o romance?”. Como se o gênero conto fosse menor, um estágio até o escritor enfim virar “adulto”. Isso se deve em muito à preferência do mercado – e aí incluo as premiações, que em tese não deveriam se guiar por premissas meramente mercadológicas – pelo romance, o que acaba se estendendo às pautas do jornalismo cultural. São pouquíssimos os prêmios que distinguem livros de contos, sendo que um dos principais do país, e voltado apenas ao romance, se intitula “Prêmio São Paulo de Literatura”. Assim mesmo, “de literatura”. Ainda que exclua as narrativas curtas e também a poesia. As grandes editoras, com exceções que só confirmam a regra, costumam recusar de modo peremptório os livros de contos. O que transforma a questão da vendagem, pedra de toque do discurso dominante, num dilema de propaganda de biscoito: o romance é fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é fresquinho? Lamentavelmente, esse cenário leva muitos contistas promissores a desistir do gênero.
Para terminarmos olhando para o futuro, você está organizando uma antologia de contos baseada nos orixás da mitologia afro-brasileira. Poderia falar um pouco sobre este projeto?
MOUTINHO: Essa antologia, que sairá no meio do ano pela editora Malê, nasce de um projeto solo. Eu alimentava a ideia de escrever um livro de contos inspirados nos arquétipos dos orixás. Seria algo para o futuro, já que ainda estava dando os retoques finais em “Rua de dentro”. O cenário político-social do país, com os retrocessos trazidos pelo governo Bolsonaro, e o clima crescente de intolerância religiosa, que atinge sobretudo a fé afro-brasileira, acabaram fazendo com que antecipasse o projeto. E, para viabilizá-lo em prazo menor, decidi transformá-lo em antologia, convidando autores de todo o país para participar. Serão, ao todo, 18 escritores, cada um deles tendo o arquétipo de um orixá como premissa para o narrativa ficcional. Alguns têm ligação íntima com o assunto, outros não. O objetivo não é fazermos um livro para iniciados. Pelo contrário. Queremos é que essa incrível e pouco conhecida mitologia chegue a mais gente. Ela é parte fundante da cultura brasileira e, como tantos saberes desapartados do eurocentrismo, muitas vezes se vê relegada ao escaninho do exótico, do pitoresco.
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Rua de dentro, de Marcelo Moutinho.
Editora Record, 128 p. R$ 39,90.
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Foto do cabeçalho é detalhe da capa do livro, por Custódio Coimbra. Foto do autor é de Leo Aversa.
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