A arte pode atender a convocações urgentes, mas às vezes levamos anos, décadas para perceber determinada proposição como um ato urgente, isto é, uma potência, algo que travessa o tempo de modo latente. Pensando em um caso concreto, faz sentido dizermos que estamos alertando para as artimanhas, ardis e armadilhas provocadas por palhaços antes que eles passassem a ocupar postos de presidência em alguns países? Bem antes de entoarmos “#ForaBozo”? Essa questão me surgiu ao recordar o trabalho Marco amador – Sessão cursos do artista pernambucano Paulo Meira, vídeo apresentado em 2006. Nele, um homem de olhos vendados, interpretado pelo artista, é colocado em perigo por um palhaço que, proferindo comandos em italiano, o induz a percorrer trajetos arriscados, como penhascos, rodovias movimentadas e corredeiras entre pedras de uma cachoeira.
A movimentação oscilante do homem vendado, em uma espécie de jogo de cabra-cega, é intercalada com a piñata, outro jogo no qual o mesmo homem tenta acertar com um porrete cabeças de argila penduradas, as quais representam a fisionomia do próprio artista. Evidentemente não quero me apegar à superfície do trabalho de Meira e fazer um anacronismo negativo, afirmando que a obra nos fala sobre a atual situação de desnorteamento e desgoverno que vivemos. Minha proposta é fazer um breve comentário sobre sentidos que podemos identificar na recorrência da figura do palhaço em alguns trabalhos na arte contemporânea, olhando retrospectivamente, à luz do uso da imagem do palhaço Bozo empregada em protestos contra o atual ocupante da cadeira de presidente da república do país e, consequentemente, ampliar os sentidos das atuais manifestações.

O tempo da arte e das imagens não é linear, mas sim complexo, anacrônico. Uma proposição realizada no passado pode compor com o presente e suscitar novas questões. O tempo da obra não se conclui, não está circunscrito a um determinado intervalo. Ele é uma fricção entre três tempos: aquilo que vemos no presente, nesse instante, sob um relâmpago luminoso; o passado latente, em meio à penumbra; e aquilo que gera tensão e desejo, apontando para o futuro. Essa é a leitura que Georges Didi-Huberman faz da imagem como “dialética em repouso” de Walter Benjamin. É por isso que podemos dizer que a história da arte está sempre por começar, desejante para transformar e ampliar sentidos, uma vez que ninguém, nem mesmo seu autor, tem monopólio sobre eles.
Nesse sentido, podemos usar as imagens de protesto “#ForaBozo” como chave de leitura retrospectiva para a presença do palhaço em alguns trabalhos artísticos, entre eles o Marco amador – Sessão cursos. Até então, as análises da fortuna crítica sobre esse trabalho costumavam privilegiar os diálogos e citações que Meira estabeleceu com referências eruditas, especialmente em um terceiro momento do vídeo no qual um tronco sem cabeça, trajando terno e segurando na mão um olho, lê textos de certificados de conclusão de diversos cursos insólitos. Aqui, há referências ao olho – vendado e enucleado, isto é, removido –, marcante nas obras de Georges Bataille, e às silhuetas e corpos separados das cabeças característicos de pinturas de René Magritte. Essas aproximações são válidas, mas podemos avançar além delas.
De modo geral, os trabalhos de Meira compartilham do grotesco, da soturnidade e do incerto dos filmes de David Lynch. Essas características compõe as diversas inversões que o vídeo faz da figura do palhaço: ao invés de promover o riso, promove o terror; ao invés de ser assistido, assiste o homem em perigo; ao invés de interpretar, exerce a direção e torna o homem objeto de seu desejo cruel. Seu riso não é um estímulo e nem é contagiante, mas uma manifestação cínica de sua certeza de que o homem vendado está enclausurado nas sombras, e por isso não se sublevará.

Políticos como Trump e Bolsonaro encarnam palhaços sombrios
Essas inversões são semelhantes àquelas empregadas por Laura Lima em Palhaço com buzina reta – monte de irônicos (2007). O espectador que esteja visitando a obra, ao passar por ela, se surpreende com o som estridente de uma buzina. O que antes parecia escultura, objeto para o olhar, metamorfoseia-se pela ação em um performer agente. O corpo silencioso e indefinível, totalmente oculto pelas vestes e pela máscara, adquire protagonismo pela ação e pelo som que nos coloca em estado de atenção e de alerta. Exige que olhemos novamente. O palhaço é algo distinto daquilo que, a princípio, pensávamos ser.
Recuando algumas décadas, encontramos outros sentidos na representação do palhaço no vídeo O palhaço degolado (1977) do pernambucano Jomard Muniz de Britto. O complexo filme de quase dez minutos mostra um palhaço percorrendo os espaços e interagindo com as mobílias da Casa de Cultura de Pernambuco, onde antes funcionara um presídio. Em sentido empolado e irônico, o palhaço recita um texto no qual critica o que denomina como “complexo de intelectuais”, se referindo ao modo como Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, entre outros, se colocaram comoporta-vozes da “cultura nordestina”. Em determinado momento, o palhaço afirma: “Recife de todas as sofríveis promessas / […] ontem casa de detenção: exposta em seu cruel miserabilismo / hoje casa da cultura: transposta no mais dócil folclorismo / ontem e hoje: casa de detenção da cultura”.
O tom empolado de sua recitação sugere que o palhaço se coloca como um sábio, antagonista da posição do intelectual moderno. O palhaço-sábio utiliza sua condição de excêntrico para, de modo ambíguo, explicitar e ocultar sua apreensão crítica dos fatos. Nas artes, é recorrente o tema do palhaço, do bobo da corte, do louco que sabe e pronuncia aquilo que ninguém quer ouvir. Ou então, em sentido contrário, que usa a condição excêntrica como performatividade para infligir leis e praticar o intolerável.

O tipo sombrio do palhaço-sábio pode se manifestar, em nossos dias, na forma de shitstorm– poderíamos traduzí-la pela nossa expressão brasileira “jogar merda no ventilador” –, comportamento utilizado no Twitter por políticos-palhaços autoritários e fascistoides, entre eles Trump e Bolsonaro. Eles usam sua performance para produzir confusão, medo e testar os limites das instituições. Tentam atenuar o intolerável e o genocídio que praticam produzindo afeto por meio da risada sombria, revestida de maquiagem e do nariz vermelho da “autenticidade”, da “humildade” e da condição de “homens de bem”.
Não nos enganemos, o palhaço, já nos mostrou Paulo Meira, Laura Lima e Jomard Muniz de Britto, não é inocente. Seu diversionismo e sua gargalhada podem ser modos de interditar debates e reflexões, e nos arrastar para a confusão das trevas. Não conseguimos responder à indagação “e o palhaço o que é?”, mas podemos apontar o que ele pode fazer.
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.