A pandemia luziu uma determinada categoria social: o entregador dos aplicativos de celular. Com a burguesia reclusa em seus domínios, as ruas (quase) vazias campeavam corpos em risco. Um vai e vem pela cidade que fez (e ainda faz) circular, dentro das grandes mochilas de entrega, toda sorte de produtos. Nessa desértica cidade, entre gorjetas e avaliações virtuais, os entregadores se mantinham invisíveis ao olhar e, de certo modo, assim retomavam às ruas na sombra de seu anonimato. Seus corpos, instáveis pela velocidade das motocicletas, se mantinham à deriva da cena principal como instrumentos a serviço das necessidades do consumidor enclausurado. Nessa história, um item se destaca. Trata-se do capacete, com sua dupla condição de proteção: para além da função de evitar ou diminuir os riscos de lesões na cabeça, o capacete aparece como um instrumento que reforça a invisibilidade de quem o veste.
O que o capacete pode esconder e o que ele pode mostrar?
A pintora Yoko Nishio inclinou a sua pesquisa sobre a fotografia do século XIX – em especial ao processo da fotografia forense que ficou conhecido como bertillonage. Ela nos oferece uma série de pinturas intitulada Enquadramentos de Bertillon, na qual parece interessada nos desdobramentos da fotografia policial desenvolvida por Alphonse Bertillon, especialmente no que diz respeito ao estatuto daquelas imagens como suporte de informação e evidência – em termos parecidos com os quais Georges Didi-Huberman questionou a função da imagem dentro do serviço fotográfico do Hospital da Salpêtrière e àqueles em que Michel Foucault apresentou o nascimento da clínica, como efeito de uma operação basicamente visual.
Contudo, quando Yoko Nishio retorna seu olhar para os serviços fotográficos do século XIX, ela não o faz sem friccionar a história misturando novos ingredientes. O retrato de figuras humanas vestindo um capacete motociclístico nos convida a pensar essas imagens a partir de uma outra perspectiva. Afinal, se o capacete pode frustrar uma evidência visual, funcionando assim como um instrumento de resistência ao domínio das identificações, a pintura de Yoko Nishio nos oferece, sobretudo, uma provocação: aqui o capacete apareceria como obstáculo à própria crença de que sem ele, ou melhor, com o rosto descoberto, seria possível alcançar visualmente o outro em sua integralidade. Neste ponto, como propõe esta artista, o capacete seria um véu[1].
Essa série consiste em um conjunto de retratos pintados que mostram, em dois ângulos distintos – frente e perfil, uma figura humana vestindo um capacete motociclístico. O vestuário das personagens de Yoko Nishio é o que antecipa o embaralhado jogo das identificações, afinal um homem de gravata, outro de jaleco e uma mulher grávida, reforçam a indiferença de quem veste o capacete e assim nos força a considerar que todos nós, de alguma forma, o vestimos, ainda que mais ou menos opacos ao olhar do outro. Nesse sentido, o capacete na pintura de Yoko é um elemento tão estranho quanto familiar àquela cena pintada, o que nos remeteria ao próprio Unheimlich freudiano para nos autorizar a afirmação de quetodos nós portamos um capacete para deixar fora do alcance visual do outro àquilo que não pode aparecer sem nos agitar: como o mistério que a personagem de Clarice Linspector se aproxima ao olhar uma fotografia e nela reconhecer a presença de um abismo, por onde revela-se algo inalcançável de G.H.

Esse enquadramento que a psicanálise resolveu chamar, desde Freud, pelo nome de fantasia, é o recurso que temos para lidar com o peso da realidade. O capacete, proposto por Yoko, nos lembra que precisamos dessa fantasia como proteção, como um anteparo diante da incidência do olhar maciço do outro em nós. Mas se a fantasia recobre, ela também permite mostrar. Nesses termos, o capacete é a perfeita metáfora desta dupla condição: um véu que protege o outro de ver em nós aquilo que nele próprio deve ser invisibilizado; e uma pequena janela, o visor que oferece um enquadramento singular para ver e experimentar o mundo.
Existe uma vida inteira que tu não conhece
O primeiro contato de Allan Weber com a fotografia foi através do skate. Ele conta que foi na pista de skate da Lagoa Rodrigo de Freitas, zona nobre da cidade do Rio de Janeiro, que lhe foi possível perceber o valor documental de uma imagem fotográfica: “Acabei comprando uma que era só botar o filme e clicar”. Logo, percebe que com a câmera ele poderia fazer algo além de um simples registro.
Durante a pandemia, Allan conta que precisou trabalhar como entregador de um aplicativo, pois com o filho recém nascido em casa, não havia tempo para esperar. Conseguiu uma moto, se cadastrou e começou a rodar.
“Nós éramos uma máquina que estava fazendo a cidade funcionar. Esperei receber pra comprar um filme e começar a fazer os registros, era muita coisa acontecendo lá fora, quem está dentro de casa nem imagina, e todo mundo na mesma função, de forma silenciosa” (em entrevista para a Revista Zum #20. ano 2021)

Sabemos que, de dentro de um capacete, ao menos este que Allan Weber usou, foi possível recortar a realidade, um enquadre específico capaz de recolher poesia na impessoalidade das relações estabelecidas nesse circuito do delivery. Allan, o fotógrafo, fez de seu capacete algo diferente do nosso e, a partir do seu visor, abriu sua lente para revelar “uma vida inteira”. Deste acervo de imagens, de nítido valor documental e histórico, ele construiu um livro, Existe uma vida inteira que tu não conhece. Escreveu com imagens uma poesia singular. Difícil não ser tragado para dentro daquelas imagens. Seu trabalho é imenso, especialmente se considerarmos que o processo é longo, pois ele primeiro olhou para em seguida reconhecer o que para a maioria permanece invisível. Depois, clicou, fez um registro. Voltou a olhar para aquelas cenas, agora como imagens, já recortadas, por assim dizer, como fantasia diante de um real de impossível tradução. Fez um livro, cingindo toda aquela realidade dispersa na velocidade de um cotidiano (quase) inapreensível. Deste livro-documento, separamos duas imagens para comentar.
Na primeira, é possível ver um um braço humano segurando uma embalagem de papelão. Esse braço atravessa uma pequena porta, aberta no que parece ser o portão metalizado de um restaurante prestes à encerrar o expediente daquela noite. É possível ver que há cadeiras lá dentro, talvez a bancada de um bar. A imagem mostra muito pouco, mas o suficiente para se imaginar que aquela embalagem vai viajar na mochila do entregador até um destino qualquer. A casa de alguém, por exemplo. Não se vê Allan na imagem (autor daquela fotografia), assim como não é possível ver o rosto do funcionário do restaurante. Não sabemos quem preparou aquele pedido nem quem irá recebê-lo em sua casa. Vemos muito pouco, mas entendemos quase todo o jogo de relações que se produz a partir de um pedido virtual de entrega de comida pela internet.
Lacan: ‘Psicanalista não tem de bancar o psicólogo onde o artista mostra o caminho’
Na segunda imagem vemos somente a mochila térmica usada para entregas, a bag. Lembro que foi o próprio Allan quem ensinou que essa grande mochila, quase sempre em tons avermelhados, é chamada de bag, em inglês mesmo, pelos trabalhadores do setor. Quando nos encontramos, ele estava com a sua. Fiquei imaginando o que havia no interior da mochila. Allan tirou de dentro dela o seu livro, como quem tira um coelho da cartola. O livro estava embrulhado em papel pardo, assim como a sacola da primeira imagem. Abri o envelope, como faria um menino que anseia pelo último capítulo da história de seu herói preferido. O livro estava assinado, logo depois de uma gentil dedicatória feita por Allan. Conversamos um pouco. Ele não tinha pressa, mas havia uma pessoa esperando e não nos alongamos, tanto quanto eu gostaria, naquela agradável conversa sobre seu trabalho fotográfico.

Dentro do livro, fui rapidamente capturado por uma fotografia, a segunda imagem que separamos para comentar. Nela, a mochila está aberta e assim é possível ver uma pequena embalagem. Talvez a primeira embalagem recolhida para um conjunto de longas viagens, ou talvez a última que sobrou entre outras entregas. Ainda está quente? Eu me pergunto vendo aquela imagem. O pacote é muito pequeno. Uma sobremesa, talvez. Pouco se sabe sobre estes pacotes na perspectiva do entregador. Há um segredo, “um silêncio”, Allan diz. Ao entregador se confia apenas a entrega. Deste lugar, o que é possível fazer?
Se a pintura de Yoko Nishio se ocupou de mostrar que todos nós usamos um capacete para se proteger da realidade, denunciando a presença de uma invisibilidade que nos constitui, a fotografia de Allan Weber revelaalgo desse invisível, não sem o sabor do lirismo de um olhar de resistência à própria condição de invisibilidade. Esse parece mesmo o compromisso de Allan com a fotografia: mostrar, através da potência da sua câmera, aliada à delicadeza de deu olhar, uma vida inteira que tu não conhece:
Durante o dia a dia sentado na moto, retirando lanche, subindo escada, elevador… Passo a reparar na grande quantidade de estímulos visuais que toda uma classe vivencia todos os dias e de maneira silenciosa. Dessa forma passo a documentar momentos das entregas e revelar situações vivenciadas apenas por aqueles que estão na correria dessa profissão Fé fé rapaziada.
[1] Mais sobre o tema do véu no texto publicado no mês de abril, nesta Coluna da Revista Caju: leia aqui.