Se qualquer interação social reverbera politicamente, como poderia um artista pressupor a realização de uma arte “engajada”? Eu poderia citar aqui uma lista de artistas homens consagrados cujas obras participaram da construção dos imaginários que colaboram com a sustentação dos poderes que condicionam nosso cotidiano, do micro ao macropolítico.

Por vezes, o debate entre arte e política oscila entre os artistas que temem que sua obra seja confundida com arte “panfletária”, o que poderia etiquetá-la no mercado e reduzir seu público, e os que se aventuram na autodeclaração de “artivismo” e termos semelhantes, pretendendo que seu trabalho transforme a realidade em alguma medida.
Ingenuidades ou estratégias à parte, com a ressalva de que há muitas outras camadas nesses tipos citados acima, sobre os quais não irei me aprofundar, nem o artista é um agente social “café com leite”, nem a arte pode salvar o mundo.
É interessante observar a entrevista (1) que a artista e teórica colombiana Beatriz Gonzalez concedeu para a crítica de arte argentina radicada na Colômbia Marta Traba. Ambas são personagens fundamentais para forjar uma história das relações entre a arte e a política na América Latina, que, na ocasião da publicação da entrevista, em 1973, vivia sob o pesadelo das ditaduras civis-militares e também os últimos meses da esperança do governo socialista chileno. Ao ser perguntada se sua obra implicava alguma denúncia ou se responderia a uma simples satisfação pessoal, Gonzalez respondeu:
“Uma denúncia implicaria um compromisso, e não há nada mais cheio de ingenuidade e de cinismo, mesmo que pareça contraditório, que a pintura comprometida. Meus objetos e quadros respondem a uma vocação como qualquer outra com seus trabalhos e satisfações.”
Artistas e outros profissionais das artes, como qualquer classe, podem se organizar e, de fato, atuar na transformação da sociedade. Um exemplo foi apresentado como um dos argumentos curatoriais da mexicana Teresa Arcq na exposição Frida Kahlo – conexões entre mulheres surrealistas no México, realizada entre 2015 e 2016, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, e na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.
Nos anos anteriores, houve no Brasil curadorias que prometiam exposições individuais à altura dos grandes nomes anunciados, mas que apresentavam pouquíssimas obras e paredes seguidas de embromação. Nesse contexto, a historiadora da arte Teresa Arcq foi honesta em sua proposta de coletiva com destaque para Frida, desvelando o circuito que conectava as 15 artistas, construído por mulheres. Em um dos textos da exposição, sob o título Mulheres para mulheres, mecenas e promotoras (2), afirma a curadoria:
“As mulheres desempenharam papel fundamental na promoção da obra de outras mulheres. Natasha Gelman foi uma das grandes mecenas para Frida Kahlo. Inés Amor fundou a primeira galeria comercial no México, que abrigou a Exposição Internacional de Surrealismo em 1940 e ofereceu às artistas exposições individuais. Maria Asúnsolo criou a galeria GAMA, e Lola Álvarez Bravo fundou a Galeria de Arte Contemporânea, que abriu espaço para a primeira exposição individual de Frida Kahlo. María Izquierdo colaborou como crítica de arte para o jornal Novedades. Kati Horna, com suas reportagens para a revista Mujeres, contribuiu para difundir a obra daquelas que se destacavam no mundo das artes e da cultura.”

Milhas pela Vida das Mulheres: corpo e autonomia
O Brasil tem um exemplo atual de intervenção política organizada que extrapola o campo das artes, o projeto Arte, substantivo feminino, realizado pela Milhas pela Vida das Mulheres. Criada em 2019, a instituição sem fins lucrativos auxilia brasileiras a acessarem seu direito de escolha sobre o próprio corpo e sua autonomia. A Milhas surgiu a partir de uma matéria sobre brasileiras e venezuelanas que viajavam para a Colômbia para interromper legalmente gestações não desejadas. Juliana Reis, idealizadora do projeto, compartilhou a notícia no Facebook com a pergunta que “viralizou”: “Quem toparia doar milhas para brasileiras irem à Colômbia abortar?”Até agora, a Milhas garantiu o acesso ao direito de escolha a centenas de mulheres.
Arte, substantivo feminino está em sua segunda edição, com 49 artistas (3) mobilizadas para levantar fundos para que mulheres realizem abortos seguros fora do país. Ao realizar a doação de R$250,00 (que pode ser parcelada), pode-se escolher um trabalho cedido por artistas como Adriana Varejão, Ana Miguel, Analu Prestes, Angélica Dass, Celina Portella, Cris Bierrenbach, Daisy Xavier, Julia Debasse, Juliana Notari, Lia Chaia, Maria Lynch, Maria Nepomuceno, Mariana Palma, Marta Supernova, Raquel Versieux. Entre outras, há Bel Pedrosa, que também participou colaborando com a curadoria de Juliana Reise Maira Marques, e o projeto Artistas Latinas, representado pelas artistas Barbara Milano, Francela Carrera e Renat Castillo.
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A Milhas começou a se relacionar com o campo das artes a partir do convite que lhe foi feito pela artista e ativista feminista Aleta Valente para participar da conversa de encerramento de sua individual, Superexposição, na galeria A Gentil Carioca, no Rio de Janeiro, em 2019. Primeira artista a arrecadar doações para a Milhas a partir da venda de um trabalho, Aleta Valente também integrou a primeira edição do projeto Arte, substantivo feminino com outras 22 artistas, realizada em parceria com o Potência Ativa (4), em 2020. Este ano, A Gentil Carioca convidou o projeto para ocupar a Parede Gentil 37. Para a edição atual, a continuidade acontecerá por meio de parcerias com o projeto novaiorquino Apexart e com a galeria holandesa Framer Framed.
No fim dos anos 1990, as historiadoras Marina Maluf e Maria Lucia Mott (que dedicou sua carreira a pesquisar a história das mulheres) resgataram,no célebre artigo Recônditos do mundo feminino, a Revista Feminina, periódico paulistano que circulou entre 1914 e 1936. No texto, entre outras questões, entrelaçam a luta pelos direitos das mulheres com o desejo. Ao abordarem um trecho do número A beleza feminina e a cultura physica, de 1918 (5):
“E quais seriam nesses tempos os sinceros desejos da mulher?, indagava a escritora Chrysanthème (pseudônimo de Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos) à sua personagem, que lhe respondia, aborrecida com o tom protetor e de disfarçado desdém dos homens superiores:
‘Nós queremos a liberdade (…) ou pelo menos a sua igualdade com o homem, o nosso déspota, o nosso tirano.’”
Mais de um século depois, nossos desejos ainda são atravessados pela luta pelo direito de desejar.
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Referências:
1 – A entrevista “Diez preguntas de Marta Traba a Beatriz Gonzalez” foi publicada no catálogo da exposição Beatriz Gonzalez, Luis Caballero, realizada no Museu de Arte Moderna de Bogotá, Colômbia, em fevereiro de 1973. Tradução minha. Segue o original:
Marta Traba: “Tuscuadros y objetos implica nalgún tipo de denuncia o responden a una pura satisfacciónpersonal?”
Beatriz Gonzalez: “Una denuncia implicaría un compromiso, y no hay nada más lleno de ingenuidades y de cinismo, aunque parezca contradictorio, que la pintura comprometida. Mis objetos y cuadros responden a uma vocación como cualquier outra, con sus trabajos y satisfacciones.”
2 –O trecho citado pertence a um dos textos de parede da exposição.
3 – Adriana Varejão, Amanda Perobelli, Ana Branco, Ana Dalloz, Ana Miguel, Analu Prestes, Angélica Dass, Barbara Milano, Bel Pedrosa, Bruna Castanheira, Celina Portella, Cris Bierrenbach, Daisy Xavier, Fernanda Pinto, Francela Carrera, Gabriela Serfaty, Giovanna Lagnone, Helena Cooper, Joana Stefanutto (It’sNotForYou), Josefina Bietti, Julia Debasse, Juliana Notari, Laura Lydia, Laura Peretti, Lia Chaia, Liana Nigri, Livia Moura, Maria Lynch, Maria Nepomuceno, Marcia Foletto, Mariana Falcão, Mariana Guimarães, Mariana Palma + Cassia Tabatini, Marta Jourdan, Marta Supernova, Mercedes Lachmann, Mônica Piloni, Mônica Zarattini, Nana Moraes, Patricia Borges, Priscila Barbosa, Rafaela Celano, Raquel Versieux, Renat Castillo, Rosane Marinho, Sophia Pinheiro, VerenaSmit e Yasmin Assade.
4 – Potência Ativa é uma articulação de projetos de arte de impacto social que visa um mundo mais justo, idealizada por Gabriela Davies, Maira Marques e Paula Borghi.
5 – O texto é um dos capítulos do livro organizado por Nicolau Sevcenko, República: da Belle Époque à Era do Rádio (1998), que é o terceiro volume da coleção, História da vida privada no Brasil, coordenada por Fernando A. Novais, da editora Companhia das Letras, São Paulo.