Exu Tranca Rua é homem, promete para não faltar;
Quatorze carros de lenha para cozinhar seu gambá;
A lenha já se acabou, mas o gambá está para cozinhar…
São muitos os trabalhos que têm pensado a relação umbanda e Brasil. Estudiosos sobre as religiões afro-brasileiras têm dedicado debates e produções sobre o tema ao longo de décadas. Questões acerca dos processos identitários, das narrativas fundantes e do caráter ecológico de suas práticas, que são forjadas em interações permeadas por violências, conflitos, sagacidade e encanto, são as principais marcas desses estudos. Lançar um livro sobre a umbanda, como Luiz Antonio Simas faz, não é uma fácil tarefa, mesmo sendo ele um autor curtido na literaturização da mandinga. Não é fácil por ele saber que a caldeira do tempo continua a cozinhar os gambás e o fogo não se apaga, independente se há ou não lenha para queimar.
Umbandas entra em cena como um ponto lançado nas dobras da gira. Quem versa sabe que o ponto é atado a partir dos desenlaces feitos e que ele se faz para dar passagem a outras criações. Versar implica conhecimento profundo sobre a linguagem e seus efeitos, assim como é um fazer dotado de rigor próprio. Em outros termos, não é qualquer um que entra na gira dando a palavra, pois se ela não está azeitada no fundamento, não firma e pode fazer com que o caboclo mais se perca do que se ache no fuzuê que serpenteia o tempo.
A amarração é plantada na porteira do livro, título, e invocada ao longo de seu bailado; em páginas que a todo momento jogam com a dúvida, preenchimento do vazio, coexistência de diferentes modos, contradição, ambivalência e o caráter inconcluso dessa invenção plural traçada nessas bandas e reivindicada como umbanda. As umbandas como práticas de saber dos cotidianos brasileiros nos ensinam duas importantes lições que precisam ser credibilizadas e Simas nos lembra. A primeira é a de que “todo tempo não é um” e a segunda é a de que “nunca se sabe tudo”, mas às vezes o pouco que se sabe já é suficiente para ajuremar um malandro.
Nesse sentido, enquanto alguns discursos continuam a caçar totalidades, se mantém atados no quebranto cartesiano e permanecem obsediados pelo maniqueísmo, a obra aqui destacada propõe um sacudimento com sua narrativa não-linear, dentro e fora, em viés e negaceada, que investe na dobra da historiografia com a ciência encantada (epistemologia das macumbas). Se engana quem pensa que é um livro sobre a umbanda e diria até mesmo sobre as Umbandas. É um livro sobre os riscados de um Brasil que foi, é e ainda podem vir a ser.
Um livro sobre a inteligência dos molambos, que reafirma identidade do historiador
“Bem que eu te avisei para não jogar essa cartada comigo…” Se em palavras lançadas em outros giros se saiu na defesa de fazer pesquisa como quem cambona – escrever e produzir conhecimento no arrebate dos tambores -nessa lua a oferta é fazer história como quem faz macumba e vive versa. Simas dá tratos as palavras e fatos para revirar e soprar mundos. A umbanda emerge aqui como acontecimento político fundamentalmente poético, que se mostra mais no não dito do que naquilo que é anunciado, assim se versa como enigma, se enlaça no feitiço, por isso é impossível de fixá-la.
Para quem insistir em encará-la como síntese do Brasil, a magia revelará a semântica inesgotável dos comuns, aqueles que gingam como protagonistas da história, o que na pemba riscada de nosso autor faz valer o traço mais marcante da sua identidade enquanto historiador. Um livro que fala do Brasil, mas que fala das inteligências, técnicas e tecnologias das farrapos, molambos, rueiros, mateiros daqui ou de acolá, seja esse acolá os continentes, as florestas, oceanos, esquinas, itinerâncias ou as inesgotáveis experiencias sociais que por aqui se cruzaram.
O Brasil e a sua história são o ponto, a umbanda é a espiritualidade que o monta. Em meio as disputas postas em torno de um projeto de nação que de santo não tem nada, a pergunta é: quem enfeitiça quem?Qual feitiço cabe ou precisa ainda ser arriado nesse alguidar Brasil? Perguntas que se traçam nessa história em cruzo que não fecha nada, só abre caminho. O que temos em mãos com Umbandas: uma história do Brasil é uma amarração em forma de livro, mas que se imanta também na esquina mais vagabunda que nesse exato momento bebe. Um livro que como as sabedorias de umbanda esconde mais que revela, quem vê de fora pode não dar nada pela simplicidade de suas palavras, mas cada uma delas é um rio de águas profundas. Saio da gira espantado com a sapiência do caboclo e imaginando o sorriso de Dona Deda, a avó do autor homenageada na obra,pelo livro e pela renda que seu neto borda e coloca na janela pra que todo povo veja a face bela das batalhas dadas pela sua gente.