Em meados dos anos 1980, num banquete em sua casa, a jornalista Hildegard Angel organizou engenhosamente os lugares à mesa de tal modo que os poetas Thiago de Mello e Décio Pignatari se sentassem um defronte ao outro. Como no simpósio de Platão, a anfitriã pretendia extrair do diálogo entre os dois convivas conversações que rendessem petites histoires – quem sabe até mesmo alguma faísca – para abastecer a coluna social que ela mantinha n’O Globo. Hildegard apostou que a proximidade física à mesa entre dois escritores de escolas distintas facilitaria lampejos de genialidade numa boa conversa.
A rivalidade entre linhagens literárias que se digladiam no campo da poesia brasileira poderia dar pano para manga a temas estratosféricos e ganhar vida naquele simpósio. O terreno para isso já estava mais que semeado e foi acirrado pela publicação em português da obra do poeta peruano César Vallejo em 1984. No texto de abertura da tradução, cujo livro foi batizado como César Vallejo: Poesia completa, o escritor amazonense enfatizou o lirismo humanista do autor de Trilce (que completa um século este ano), e fez, sem mencionar nomes, uma exegese da interpretação vanguardista feita pelos escritores de linhagem concretista.
Ao formalismo defendido por Pignatari, Thiago opôs um humanismo abissal, afirmando que o poeta peruano utilizou recursos literários, que só mais tarde fariam parte do estilo de escritores como Manoel de Barros, E.E. Cummings e João Guimarães Rosa. De fato, Vallejo foi um dos primeiros a adotar sistematicamente temas cotidianos e a fazer uso literário da linguagem oral.
Na apresentação do livro, Thiago afirmou que certos poetas vanguardistas, em sua leitura dos poemas de Vallejo, foram “seduzidos pelo esplendor da invenção formal, de fascinante hermetismo”. No entanto, segundo o autor de Os estatutos do homem, posteriormente a Los heraldos negros (1918) e Trilce (1922), o peruano deu uma guinada para “um profundo humanismo”, sem merecer a devida atenção dos vanguardistas brasileiros, mais fascinados que estavam pela experimentação formal que atravessa Trilce do que pelo conteúdo lírico de sua obra posterior. Nesta leitura, a produção de Vallejo ganha mais um caráter de arte conceitual do que literário.
Voltando ao simpósio, decorrido algum tempo do banquete, regado a um bom escocês e estimulado pelo nível do diálogo, Décio provocou o poeta amazonense. Em meio à discussão sobre a psicologia da composição de Trilce. Os dois divergiram cordialmente, e Décio concluiu o assunto de forma abrupta:
“Meu sonho é escrever uma poesia que ninguém entenda”.
“Nem mesmo tu?”, Thiago emendou de bate-pronto.
“Ah!”, respondeu o concretista. “Aí seria a glória!”
Faits divers como esses, cerzidos com boa dose de fantasia e exagero, alimentam a memória das conversas que mantive com meu tio Thiago, quase sempre envolvendo de forma casual figuras literárias, músicos, artistas, como José Lins do Rego, Miró, Manuel Bandeira, Pablo Neruda, Roberto Fernández Retamar, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges e outros tantos. Ri muito, por exemplo, com a forma como Thiago narrou a bronca que o pianista Bola de Nieve dera em Fidel Castro, na abertura de uma das conferências anuais de escritores da Casa de las Americas, porque este não parava de falar, justamente no concerto de abertura do encontro:
“Interrompo, comandante?”, indagou o temperamental compositor cubano.
Também me lembro do poeta sempre vestido de branco, e dos momentos mágicos passados em sua casa na floresta, preparando uma caldeirada de tucunaré na pimenta murupi; visitando as aldeias dos sateré-maués e as discussões com os caboclos ribeirinhos sobre a importância do vento geral e do banzeiro no sistema de navegação; ou ainda desfrutando do banho nas praias do Andirá, como a Ponta da Safadeza, onde os jovens caboclos se divertem nas tardes amazônicas em pontas de areia que surgem e desaparecem conforme as duas estações da região, seca e chuvosa.
No campo da música, o poeta também se mostrou um bom parceiro, com composições, como o samba Faz escuro mas eu canto, com Monsueto Menezes; além de canções com Ary Barroso (Cantiga de enganar a tristeza); seu irmão Gaudêncio (Amor mais que perfeito e Amadeste); e com seus filhos Manduka (Cunhatã dourada) e o caçula Thiago Thiago de Mello (A aprendizagem amarga).
Em entrevista, ainda em Portugal, Thiago anunciou que retornaria do exílio antes mesmo da anistia e do fim da ditadura militar. Justificou-se, afirmando que, após um enfarte que quase o calou de uma vez por todas, sentia que sua vida se aproximava do fim e que pretendia viver os últimos anos que lhe restavam na Freguesia do Andirá, em Barreirinha, sua cidade natal, no interior do Amazonas. O enfarte ocorreu ainda no Chile, depois de escapar por pouco de ser fuzilado por um pelotão de carabineiros, após o golpe que derrubou Salvador Allende em 1973, no 11 de setembro latino-americano.
Ao ler a entrevista, Lúcio Costa enviou de presente para o amigo o projeto de sua casa. Nascia da prancheta de uma das mentes idealizadoras de Brasília, o Porantim do Bom Socorro, batizado assim em homenagem a Pedro Thiago de Mello, pai do poeta e meu avô. Segundo o escritor amazonense, mais que uma casa, o Porantim era um “lugar”, com toda a metafísica que a expressão carrega, do mesmo modo que a esquina dá ensejo ao Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges.
Recordo-me que a primeira vez em que me hospedei no Porantim foi no início dos anos 1980. Fiquei fascinado com as conversas que tivemos, cuja forma desenhava uma cosmologia em espiral, repleta de enredos e labirintos, como as anavilhanas amazônicas de sua mata, que podem fazer uma pessoa se perder para sempre. Presente nesses diálogos, a floresta em sua flora de ampla diversidade, bem como os bichos, nossos primos.
Esse é o cenário onde viveu Thiago, com seus morcegos, onças, sucurijus, jiboias e outras serpentes, caranguejeiras, arraias, crocodilos, ariranhas, lontras, peixes-boi, botos, micos e macacos e uma ampla variedade de pássaros. Sem mencionar os caboclos ribeirinhos, índios e os curumins e cunhãs de riso solto e pés descalços, além de seres mágicos e entidades de encantamento – ao retornar de uma visita ao Porantim, uma mãe de santo me disse que eu voltava do mato muito bem acompanhado. E de fato, me sentia pleno.
Nesta primeira visita, hospedei-me em uma das três bibliotecas, o que tornou inúteis meus esforços para conciliar o sono. Examinei documentos originais, poemas sendo trabalhados pelo escritor, correspondência, entre outros papéis de importância histórica. Nesse remexer, me lembro de encontrar no fundo de uma gaveta, em meio à papelada do escritório, um poema original de Neruda dedicado a Thiago, que só alguns anos mais tarde foi publicado. Na parede da sala, muitas obras de arte, inclusive um Miró, sendo devorado aos poucos pela poderosa umidade da floresta tropical.
Essas histórias ativam minha memória de uma época, assim como o Porantim se apresenta mais como um lugar do que uma casa. São tempo e espaço que se fundem e se foram. O rombo é enorme. Não se trata apenas da presença física do poeta que nos deixa para aderir ao infinito, mas uma forma de pensar e sentir, isto é, uma cosmologia e uma moral de um tempo que, com ele, desapareceram.
Autor
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Jornalista e antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Autor dos livros “Memória afetiva do botequim carioca” (José Olympio) e “Milton Nascimento e Lô Borges: Clube da Esquina”, da coleção O livro do disco (Cobogó).
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Jornalista e antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Autor dos livros “Memória afetiva do botequim carioca” (José Olympio) e “Milton Nascimento e Lô Borges: Clube da Esquina”, da coleção O livro do disco (Cobogó).