De volta depois de muito tempo ao Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, pude refletir sobre as relações entre uma das mais importantes obras do museu, a instalação da artista Janet Cardiff, e a revolução que Thomas Tallis (c.1505-1585) causou na história da música. Imagine entrar numa sala com 40 pessoas, cada uma delas cantando uma música diferente. A primeira ideia é que isso vai gerar uma confusão gigantesca; no entanto, Tallis realizou esse feito com maestria criando uma das obras mais icônicas do repertório vocal. o moteto Spem in Alium. Esse título vem das palavras em latim no início da peça “ Spem in alium nunquam habui praeter in te, Deus Israel” que significam: “Nunca tive esperança em ninguém, exceto em Vós, Deus de Israel”. Tallis viveu na Inglaterra na época em que reinaram Henrique VIII, Eduardo VI, Maria e Elizabeth I, um dos períodos mais conturbados para o país. E também um dos mais prolíficos no campo das artes, onde surgiram compositores brilhantes que competiam entre si para realizar as maiores proezas musicais. Imaginem o impacto da composição: o coral está em volta do público, pois a disposição dos cantores no espaço é de extrema importância para o efeito sonoro. No caso do Spem in Alium, acredita-se que a peça foi composta para ser apresentada em uma sala octogonal, onde a música envolve completamente a audiência.
Com essa característica em mente, essa obra foi utilizada pela artista contemporânea Janet Cardiff em Fourty part motet, uma instalação onde 40 caixas de som reproduzem continuamente a execução do moteto pelo coro da catedral de Salisbury. Inicialmente ouvimos a conversa dos cantores, os barulhos na sala onde estão e de repente após um breve silêncio a música inunda o ambiente envolvendo o público em uma jornada quase mística. A artista teve o cuidado de gravar cada voz isoladamente, e o efeito é de que estamos rodeados pelos cantores. Podemos caminhar pelo ambiente e como cada caixa de som reproduz a voz de um único cantor torna-se possível acompanhar cada linha vocal separadamente.O efeito da obra em uma sala vazia, faz com que o espectador/ouvinte seja jogado numa espécie de máquina do tempo, a única presença naquele ambiente é a música composta a mais de 500 anos atrás, que cria uma paisagem sonora onde cada um encontra a sua própria conexão. O som circula no ambiente de acordo com a disposição dos cantores no octógono. Tallis sabia da impossibilidade de se ouvir 40 vozes diferentes ao mesmo tempo e sabiamente distribuiu as seções no espaço reservando os momentos em que todos os cantores participam para as partes mais dramáticas. É uma experiência única entrar na instalação da artista britânica e mergulhar nessa obra monumental.
No Renascimento, apogeu e renovação dos corais
A música coral viveu um apogeu na Renascença europeia, e a Inglaterra ocupou um lugar de destaque nesse cenário. Os compositores manejavam as vozes como se fossem instrumentos de uma orquestra,em grandes conjuntos policorais. Um marco nessa técnica é a obra Vespro della beata vergine, de Claudio Monteverdi(1567-1643), composta para a Catedral de São Marcos em Veneza. A obra faz uso dos vários coros da igreja proporcionado efeitos estereofônicos, valendo-se também de características particulares da arquitetura o compositor cria efeitos únicos, como um coral cantar com cada integrante aproveitando o eco do outro como base. Uma loucura.
A formação usada por Tallis no moteto Spem in Alium é de oito corais com cinco cantores em cada um (soprano, contralto, tenor, barítono e baixo), que totalizam as 40 vozes da partitura. Normalmente se escreve música para duas, três até seis vozes, pois na música vocal há um compromisso com o texto e seu entendimento. Na busca por efeitos grandiosos, os compositores renascentistas deixaram de lado esse compromisso e passaram a tratar as vozes como partes instrumentais, manejando as massas corais como naipes de uma orquestra. No caso do Spem in Alium a grandiosidade se duplica, pois além de um efetivo vocal de porte, a escrita é um dos ápices da música polifônica.
Pioneirismo de Alessandro Striggio precisa ser reestudado
Os precedentes para essa façanha se encontram em várias composições do período e um compositor quase esquecido parece ter influenciado Tallis no seu projeto: Alessandro Striggio (c. 1536/1537-1592) era um prestigiado músico florentino que escreveu algumas missas a 30 e 40 vozes e sabe-se que visitou Londres em missão diplomática, sendo muito provável o contato com o músico inglês. No vídeo, temos o Agnus Dei de uma missa de Striggio a inacreditáveis 60 vozes independentes.
Falando de outro meio virtual, nesses tempos de pandemia não houve outra maneira de se fazer música ao vivo a não ser online e isso gerou um material interessante com a mesma obra. Diversas associações corais fizeram ensaios e apresentações através da plataforma zoom. Invertendo a dinâmica da performance desmaterializada proporcionada pelas caixas de som de Janet Cardiff, aqui temos a visão dos cantores executando suas partes. É como o avesso do projeto da artista contemporânea. Na apresentação do zoom fica visível não só a presença humana como também a dinâmica dos coros durante a interpretação. Perde-se de um lado, pois não temos a sensação espacial de alternância, mas ganha-se ao perceber a arquitetura engendrada por Thomas Tallis na construção da sua obra. O melhor dos mundos seria estar na sala octogonal do Duque de Norfolk e ouvir a música no lugar onde foi apresentada no século XVI. Como nem o Duque e nem a sala existem mais vamos nos contentando com o Youtube…
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FOTO DO CABEÇALHO:
Tibério França
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.