A psicanalista e psiquiatra Neusa Santos Souza publicou, na década de 1980, um notoriamente conhecido trabalho sobre a violência do racismo e seus efeitos sobre o corpo e o desejo do negro no Brasil. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, recentemente reeditado pela Zahar, é um texto que permanece aceso como leitura fundamental, dada sua importância histórica, sociológica e clínica. Seu trabalho aparece como um grande instrumento de resistência frente ao permanente e abjeto massacre sofrido pelo negro, na pele e no cerne de sua subjetividade: um negro coagido a ser branco desde às suas primeiras identificações. Como Neusa disse, trata-se de uma tentativa de viabilizar a construção de um discurso “do negro sobre o negro”, um trabalho de libertação diante um modelo de identificação comprometido com uma sociedade branca, escravocrata e racista.
Em entrevista ao programa Espelho, do Canal Brasil, gravada pouco antes de sua morte, em dezembro de 2008, Neusa diz aos entrevistadores, o ator Lázaro Ramos e a jornalista e professora Sandra Almada, sobre seu desejo pela clínica das psicoses. Embora tenha ficado conhecida a partir da publicação de sua dissertação de mestrado Tornar-se negro, Neusa deixou um significativo trabalho sobre a clínica das psicoses enredado ao seu compromisso de transmissão da psicanálise de orientação lacaniana, especialmente em seus famosos seminários na Casa Verde [1]. Em novembro de 2021, dedicamos o ultimo encontro de um curso oferecido na Casa Verde sobre a clínica de orientação lacaniana para falar sobre o estudo e o legado de Neusa Santos Souza a partir de sua clínica com a psicose, especialmente a partir do livro A psicose: um estudo lacaniano (ed. Revinter, 1999).
Nesta ocasião, falamos ainda um pouco da nossa clínica atual na Casa Verde, à luz do referencial psicanalítico, dentro do amplo espectro de limites e possibilidades que a psicanálise nos oferece. Durante esse ultimo encontro, Carmen Tourinho, uma das fundadoras da instituição e umas das testemunhas da passagem de Neusa Santos pela Casa Verde, sublinhou que, além de negra, Neusa era uma mulher, nordestina, que construiu a sua clínica e o seu percurso instalada em um ambiente predominantemente masculino – ela se refere ao Instituto de Psiquiatria da praia vermelha onde foi residente. Lá, ela jamais recuou, ao contrário, ela avançou para nos deixar um trabalho, tanto em seu conjunto de seminários sobre a clínica psicanalítica ministrado na Casa Verde, quanto em artigos e textos escritos sobre as psicoses, estes que merecem ser revisitados constantemente. E assim o fazemos.
Um pouco sobre a clínica de orientação lacaniana
A orientação de Lacan para o analista, diante da psicose, é “não recuar”. E o que isso quer dizer? Que diante disso que a neurose recalcou para nunca mais querer saber à respeito, e que a psicose precisa lidar o tempo todo, esse não-sabido que aparece como violência fora do sentido, o analista, instalado nessa relação de transferência, precisa suportar, e mais. Na clínica, o analista mais do que convocado à não recuar estaria também submetido a uma ética, tal como proposta por Lacan para o desejo (1959). Portanto, “não recuar” também significa “não ceder” (na ética do desejo), dar um passo e, como Neusa disse, “insistir”.
Minha clínica começou ali, na Casa Verde, onde permaneço, marcado pela clínica de orientação lacaniana, legado de meus orientadores por quem decidi me filiar (Marcus André Vieira e, atualmente, Tania Rivera) e de meu lugar enquanto analisante. A clínica também foi edificada a partir de um desejo vivo pela humanidade e sobretudo pela diferença, desejo que aprendi e desenvolvi como testemunha do trabalho, especialmente, da Carmen Tourinho e da Sonia Müller naquela instituição. A clínica das psicoses faz parte da minha formação como analista e do meu percurso como analisante, desde o início, uma forma de querer saber um pouco mais sobre o não-sabido. De uns anos pra cá, como coordenador do grupo de estudos dentro do programa de formação e estágio em saúde metal, em parceira com o também psicanalista e amigo Fernando S. El-Jaick, nos debruçamos sobre o legado de Neusa Santos Souza de modo a usar o dispositivo do grupo de estudos para manter aceso este antigo vínculo da clínica de Neusa Santos Souza com a Casa Verde.
Além de ministrar os famosos seminários – que, à época, lotaram nossa sala de TV, com pessoas amontoando-se no chão e nas escadas para ouvi-la falar -, Neusa Santos Souza deixou grande parte de sua biblioteca na Casa Verde. Atualmente, muito de seus livros, seminários de Lacan, cursos de J-A Miller e outros, livros raros, esgotados, permanecem sob o abrigo da instituição e disponíveis para consulta [2]. Infelizmente, não cheguei a conviver com ela.
A leitura de Neusa Santos Souza sobre o ensino de Lacan é preciosa. Muitos de seus livros originais em francês e alguns inclusive de primeira edição, nos permitem considerar que ela dispensava a leitura intermediária dos comentadores. Sua leitura na fonte, como se diz, talvez pudesse nos servir, ainda que no registro de nossa fantasia, como aquilo que permitiria a Neusa Santos Souza um contato direto com o ensino de Lacan, permitindo a ela tecer com isso uma forma singular de apreensão e transmissão. Leitor de seus textos, é possível perceber como ela contrariava um modelo mais comum de transmissão da psicanálise: evitando a lateralidade dos conceitos ditos mais herméticos do léxico de Lacan,
Neusa era capaz de dizer algumas coisas de forma assertiva, simples e direta. Tão simples e direta ao ponto de surpreender o leitor. Através de suas vinhetas clínicas, é possível recolher e reconhecer o seu compromisso com a psicose, com seus pacientes. Compromisso ético e clínico, sem dúvida nenhuma, mas também político. Basta ler seus textos para confirmar todas essas coisas que atribuímos a ela. Neusa Santos Souza nos lembra, por exemplo, que “a experiência psicótica como um acontecimento, longe de excluir, implica o sujeito em seu trato com a linguagem”. Percebam aqui a dimensão política desta afirmação – totalmente alinhada à enunciação freudiana sobre o delírio em seu famoso caso Schreber (“delírio como uma tentativa de cura”), passando pelo ensino de Lacan, especialmente na década de 1950, porém o que chama nossa atenção é o “longe de excluir”. A psicose é fenômeno de linguagem e, portanto, o psicótico, assim como o neurótico, cada um a sua maneira, falam e são falados, se arrumam e se embaralham com ela, uns mais e outros menos. Afinal, no reino das palavras estamos todos alienados, como disse Lacan.
Um pedaço de seu ensino: orientação para estagiários da Casa Verde
Decupando Lacan, Neusa dizia que a psicose seria uma experiência possível a todo ser falante, a todos aqueles que possam atar e desatar laços sociais. E isso é importante entender no sentido de que além das experiências disruptivas, no que se convencionou chamar popularmente como loucura, a psicose também é terreno de alguma organização, e um sujeito psicótico organizado, estabilizado (como se diz formalmente no campo da Saúde Mental) deixaria a loucura em um canto social silencioso e, consideravelmente, discreto. Contudo, sabemos que a psicose tem seu lado mais barulhento, o “momento trágico do desencadeamento” como Neusa Santos Souza ensinava. E se ela sublinhou a diferença entre “fenômeno e estrutura” ou, ainda, entre a experiência psicótica e a estrutura psicótica, foi para nos comunicar esse pensamento de Lacan sobre a loucura.
Através de Lacan, sabemos que nos três momentos lógicos da cena edípica freudiana, houve um certo privilégio em acentuar o momento do corte. Corte feito pelo Pai (Pai simbólico) que marca o sujeito e o transforma em sujeito do desejo, escrito com um S barrado ($). O encontro foracluído, ou desencontrado, com este significante (do Nome-do-Pai) seria um “acidente silencioso”, como Neusa diz, porém de consequências sempre ruidosas. Uma espécie de catástrofe na relação do sujeito com a linguagem. Catástrofe que se presentifica na tentativa da psicose de reparação através de escritas exuberantes, enxame de neologismos, frases quebradas, nebulosas, interrompidas ou ininterruptas, sem ponto de basta, como se diz: um ponto que ancore o sujeito, efeito da pontuação em uma escrita, ou, talvez uma bóia lançada no mar das palavras para que o sujeito a cada frase, a cada formulação, possa respirar. A ausência do Nome-do-Pai daria lugar a ordenação de um trabalho de reconstrução, criador de um novo mundo de significações. Estamos falando do delírio, a metáfora suplente à paterna, metáfora delirante, “fantasia delirante”, Neusa assim nomeou, uma imensa teia de palavras e imagens, substituto do Nome-do-Pai.
Neusa dividiu sua leitura da orientação de Lacan frente a psicose a partir das três dimensões do ser falante ou, se preferem, três registros da experiência humana: o real o simbólico e o imaginário. O imaginário aqui, tomado como uma ordem composta pelas imagens e pela libido. Quem já acompanha essa coluna há mais tempo, certamente vai se lembrar sobre o que falamos do “estádio do espelho”, fórmula de Lacan na década de 1930. Em resumo, seria um interesse lúdico que a criança mostra a respeito de sua imagem especular. A imagem captura a criança, ela se identifica com esta imagem no espelho antecipando uma unidade corporal. Trata-se de uma identificação imaginária, fruto de uma alienação desenvolvida por uma imagem que aparece do lado de fora, no espelho. A referência central neste campo do espelho, do imaginário, é o corpo e tudo mais que de erótico e libidinal que gira e se organiza em sua periferia.
Lembrem do espelho que Lacan nos ofereceu, se na neurose existe uma agência bem amarrada entre o imaginário e o simbólico (encarnada no assentimento do adulto que acompanha a criança na cena do espelho), na psicose o imaginário funcionaria com uma certa autonomia, o que dá lugar a um terreno onde prolifera, segundo Neusa nos ensinou: “uma multiplicidade de fenômenos marcadamente narcísicos, próprios da fase do espelho, estrutura elementar responsável pela constituição do eu”. Não por acaso Lacan fala a respeito da psicose como uma “regressão tópica ao estágio do espelho”, constituinte de uma imagem (identidade) precária, basicamente especular, reduzida ao confronto do eu com seu duplo, portanto, constantemente ameaçada. Nas palavras mais diretas de Neusa Santos: “imagem ameaçada de dilaceramento, aniquilação e morte”. Diante desta estranheza radical no espelho (imaginário) e do caos significante (simbólico), onde o sujeito aparece tragado por um turbilhão sonoro de signos vazios de sentido, o delírio aparece como um “recurso tático”, ela diz, ou ainda, como uma “solução elegante”(Lacan): um trabalho que engajaria o sujeito na reconstrução da realidade.
Neusa escreveu que o real é um conceito que tem a marca, a assinatura de Lacan. E, se Lacan separou o real da realidade, é porque a realidade é marcada por aquilo que Freud chamou por fantasia, ao ponto que o real é pura ausência de sentido, ameaçador, deserto, sem direção, sem ordem e sem lei, dito de forma mais direta: o real para Lacan é um nome para o impossível. Neusa empresta toda a sua lucidez para nos comunicar que na psicose é preciso inventar uma maneira de construir um anteparo para não se encontrar com o real a todo instante, a cada esquina, e destaca que essa dificuldade se testemunha no dito do sujeito psicótico. Essa dificuldade que ele tem de intervalar qualquer coisa entre ele (seu corpo) e o Outro, o deixa demasiado exposto, exposto ao gozo do Outro. Aqui ela se refere muito bem a essa experiência, trazendo um caso que atendeu em sua clínica:
A construção do sistema delirante autoriza que um intervalo feito de significantes se instale entre o psicótico e o seu Outro, ou melhor, o delírio é esse próprio intervalo que, se instaurando aí, abre ao psicótico uma linha de fuga que o faz escapar da dolorosa exposição ao retorno alucinatório, condição onde se vê reduzido e largado na posição de resto decaído, objeto real do gozo do Outro. “não estou aguentando ficar em pé, cabeça alta… ‘tou esmola’”. Neste dito, com a lucidez própria à psicose, Ivan explicita o deixar cair em relação ao corpo próprio, o lugar que ocupa no gozo do Outro – lugar não do pedinte, do mendigo, do esmoler, mas do objeto. Ele é isso, essa sobra que se dá, esse resto que se perde – esmola.
Eis o árduo trabalho da psicose, que nós analistas testemunhamos em nossa clíni ca, senão como seus “secretários”, como bem disse Lacan. Neusa, por seu turno, nos transmitiu uma certa dimensão desse secretariado, que ela nomeou como uma primeira exigência que se impõe ao analista diante da psicose: “servir”. Ela então diz que servir é ouvir, acolher um sujeito “do modo como ele se apresenta em cada momento”. Servir é aceitar a contingência, o imprevisto, “suportar o tédio, desejar sem exigir, esperar sem expectativa”. Se servir é acolher, acolher é ouvir o que o sujeito nos indica, aprendendo a caminhar a partir das coordenadas oferecidas por ele na transferência, “na direção de seu próprio tratamento”. Acolher é, ainda, ela diz, estar disponível a aprender com cada paciente ao ponto de perceber o que o analisante pede ao analista: um lugar, um tempo, uma escuta e algumas palavras.
Um lugar para falar o que não pode falar em outros lugares. Um lugar para ser ouvido sobre essas coisas que não se diz e não se ouve em outros lugares. Com isto ele nos pede alguma cumplicidade. Pede que compartilhemos com ele, em alguma medida, aquilo que está experimentando, vivendo. Ele nos pede um lugar e um tempo, para que um trabalho psíquico se elabore, para que uma conquista se realize. Ele nos pede que lhe falemos alguma coisa: alguma coisa que alivie a dor, alguma coisa que tranquilize a inquietação.
Segundo Neusa Santos Souza, e compartilhamos aqui sua posição, ao analista que ouve, ou melhor, que “consente em ouvir”, caberia ouvir sem julgar, “sem se inquietar demasiado” e, principalmente, “sem esperar”. Ela retoma Freud, e conclui dizendo que ao analista cabe “ouvir sem esperar e sobretudo ouvir o que não se espera”. Ouvir o que o sujeito precisava falar do modo que para ele foi possível dizer. Ouvir, nestes termos, ela diz, também é sinônimo de “aceitar”.
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[1] Casa Verde: fundada em meados da década de 1990 (1994 aproximadamente), trata-se de um serviço de saúde mental que funciona no formato Hospital-Dia, portanto de atenção diária, enredado ao movimento da Reforma Psiquiátrica, que se propõe como alternativa à hospitalização psiquiátrica e, especialmente, a um agenciamento social da loucura diferente do modelo manicomial clássico.
[2] Recentemente, uma nova turma do programa de estágio em saúde mental começou a reorganizar e digitalizar esses livros e futuramente teremos um acervo em melhores condições para consulta e empréstimos. Valendo citar o trabalho das estagiárias Antônia de Lamare e Ana Beatriz Thees.