Por uma hora, a vida fica em suspenso. Ganha outro tempo e espaço. Descola da razão. O corpo de quem está de frente para a cena vai sendo levado por um encantamento lentamente tecido. Primeiro, um majestoso tapete formado por 140 cobertores enche a retina de cores. Em seguida, 11 intérpretes criadores movem-se, sem pressa, em meio ao mar de estampas, oferecendo combustível para um deslumbrante e incessante caleidoscópio de imagens, enquanto o canto ritmado do povo Mbya Guarani entra pelos sete buracos das nossas cabeças. Encantado, novo trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças, é, antes de mais nada, uma experiência sinestésica, capaz de chacoalhar os sentidos até explodir nossos corpos em alegria. Sim, uma alegria genuína, dessas que fazem a gente voltar a acreditar em outros mundos possíveis.
A coreógrafa Lia Rodrigues é mestra em oferecer esperança. Dentro e fora da cena. E há muitos anos. São 32 anos militando com sua companhia de dança. Foi mais de uma década à frente do festival Panorama, ajudando a formar toda uma geração de coreógrafos e a transformar o olhar do público carioca. E já são 18 anos trabalhando no território da Maré, conjunto de 16 favelas, na Zona Norte do Rio, onde, em parceria com a associação Redes da Maré, fundou o Centro de Artes da Maré e a Escola Livre de Dança da Maré, num trabalho singular que une arte e política. Hoje, cinco dos 11 bailarinos da companhia são crias da Maré, onde todas as obras são gestadas durante longos meses, bagunçando a lógica imediatista do mundo neoliberal das artes ou mesmo desafiando a escancarada falta de recursos para artistas promovida pelo atual desgoverno brasileiro.
Turnê europeia com parcerias que mantêm companhia na Maré
Já faz alguns anos que todo o dinheiro para as criações e manutenção da companhia vem de fora, de parceiros europeus. Para Encantado (em cartaz no Sesc Pinheiros até 10 de abril e com temporada na Maré prevista para setembro de 2022), foram cerca de 20 instituições e teatros, a começar pelo Théâtre National de Chaillot, palco mais festejado de dança na França, onde Lia Rodrigues é residente e onde o trabalho estreou mundialmente em 1º de dezembro do ano passado, com sucesso de público e crítica. Foi o grande final de uma programação especial homenageando a coreógrafa dentro da 50ª edição do prestigiado Festival de Outono de Paris, para a qual, em mais uma ação política, em vez de oferecer apenas obras suas, Lia convidou artistas brasileiros a se apresentarem e ainda ajudou a promover uma exposição sobre a Redes da Maré, no Le Centquatre-Paris, centro cultural antenado, onde também é residente.
Mas até chegar à pajelança arrebatadora de Encantado o caminho foi longo e árduo. A pandemia fez com que toda a agenda de 2020 da companhia, lotada de apresentações na Europa, fosse cancelada. Enquanto quem tinha privilégio se fechava, Lia foi à luta para conseguir recursos tanto para o trabalho novo, como para refazer o teto do Centro de Artes da Maré. Deu certo. Deu muito certo: da fase dos bailarinos e coreógrafa presos em suas casas nasceu uma série de vídeos sobre o processo de criação de trabalhos antigos, os Cadernos de criação, e uma campanha bem-sucedida para a construção do novo telhado na Maré. Encantado começou a ser criado em março de 2021, nove meses antes da estreia, num Centro de Artes da Maré lotado de alimentos para a população mais vulnerável das 16 favelas da região.

Àquela altura, a campanha “Maré diz NÃO ao coronavírus”, promovida pela Redes, estava a pleno vapor, envolvendo a distribuição de cestas básicas para milhares e milhares de moradores, mas também oferecendo isolamento seguro para os doentes, consulta de telemedicina, refeições para moradores de rua e testagem ampla. O movimento culminou com a Maré sendo o primeiro conjunto de favelas da cidade a ganhar uma campanha específica de vacinação contra a covid-19 – e vacinando cerca de 37 mil pessoas em quatro dias, 97% da população adulta. A pulsão de vida que tomou conta do Centro de Artes da Maré acabou penetrando na dramaturgia de Encantado, desdobrando algo que está claro nos trabalhos da coreógrafa desde que chegou à favela: a experiência coreopolítica, uma política do chão, cuja base encontra-se nos laços profundos entre o movimento, o corpo e o lugar. Ou seja, uma dança que transforma o território e ao mesmo tempo é transformada por ele.
‘Torto arado’, de Itamar Vieira Jr.: uma das inspirações
E como acontece a cada nova criação, Lia Rodrigues parte de leituras para entrar no que chama de “estado de poesia”. Desta vez, o tal encantamento que dá título ao trabalho, as possíveis relações entre seres humanos e não humanos exploradas em cena tiveram como textos disparadores os livros Torto arado, de Itamar Vieira Júnior; Uma ecologia decolonial, de Malcom Ferdinand; Ficar com o problema, de Donna Haraway, além de muitos materiais sobre cosmogonia ameríndia, tema que vem interessando a coreógrafa há alguns anos. Das muitas leituras solitárias surgem ideias, imagens, sensações e fabulações que, levadas por Lia à sala de ensaio, são partilhadas com os intérpretes co-criadores, num verdadeiro processo coletivo de elaboração. Começam com improvisações e incorporações, metamorfoseando-se, aos poucos, em células ou quadro coreográficos e, mais tarde, na dança propriamente dita.

Em Encantado, a imagem símbolo, deflagradora da coreografia, foi justamente de um morador de rua embrulhado num cobertor. Do primeiro duo de bailarino e cobertor foram surgindo outros e mais outros cobertores, todos comprados no Mercadão de Madureira, centro comercial icônico do subúrbio carioca, até chegar ao poderoso número de 140. Em certa altura do processo criativo, no entanto, Lia, bailarinos – Leonardo Nunes, Carolina Repetto, Valentina Fittipaldi, Andrey Da Silva, Larissa Lima, Ricardo Xavier, Joana Lima, David Abreu, Matheus Macena, Tiago Oliveira, Raquel Alexandre – e a dramaturgista Silvia Soter se viram desafiados por um material tão maleável que parecia ter vida própria. Só ensaios exaustivos e muita contagem por trás de cada movimento conseguiram domar os cobertores, fazendo com que a plateia de Encantado veja um trabalho orgânico, no qual, com a maior naturalidade e simplicidade, bailarinos se transformam em animais ou em seres bizarros sempre envoltos nos tecidos.
Lia e sua trupe oferecem múltiplos estados corporais a quem está em cena mas também a quem está fora dela, como desejavam dois dos artistas inspiradores da coreógrafa, Lygia Clark e Tunga. Se com Lygia, artista primordial na criação de Aquilo de que somos feitos (2000), Lia passou a ter uma relação mais ativa com o espectador e a usar materiais cotidianos, a parceria com Tunga, em performances nos anos 2000, bagunçou seu trabalho, ao lidar com elementos orgânicos e imprevisíveis em cena. A precariedade dos cobertores baratos surge aqui como potência. Uma energia pulsante que transborda e arrebata na celebração final de Encantado, com todos os bailarinos se transformando num grande corpo coletivo e dançando como se não houvesse amanhã. Ou melhor, como se o amanhã fosse pura esperança.
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Fotos no cabeçalho e no corpo do texto:
Sammi Landweer
Autor
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Jornalista, crítica de dança, doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, com a tese "Em Fúria na Maré. Do diverso ao singular e vice-versa: arquivos que compõem a obra de Lia Rodrigues”.
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Jornalista, crítica de dança, doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, com a tese "Em Fúria na Maré. Do diverso ao singular e vice-versa: arquivos que compõem a obra de Lia Rodrigues”.