Dom Pedro, o “Primeiro”, está ali há muito, muito tempo. Pelo menos, para quem vive atualmente no Rio, parece ser muito tempo. Talvez pareça que está ali “desde sempre” só para mim – mas aí suponho, de novo, que para mais muita gente também. Parece tempo demais. Passa da conta.
Ele, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, empunha a carta constitucional de 1824 montado sobre seu cavalo. O cavalo e o Pedro, que juntos e empinados chegam a seis metros de altura, estão sobre um pedestal de bronze de seis metros quarenta centímetros de altura que, por sua vez, está sobre um embasamento de granito carioca de três metros e trinta centímetros de altura. Monumental. Eles se apoiam sobre pessoas, bichos, rios, plantas. Mas não são pessoas quaisquer. Não são bichos quaisquer. Nem plantas. Nem rios. São indígenas sem nome, sem etnia, sem território. São antas, jacarés, tamanduás, tartarugas. Rios que cruzam um Brasil que o Dom Pedro com seus dezoito nomes, em seu cavalo, proclama: “independente”.

Uma constituição dessas, bicho. Fajuta. O cavalo. Dom Pedro. A Primeira “Constituição”. Uma Constituição entre aspas para uma independência entre aspas.
O Haiti, definitivamente, não é aqui.
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Olha esse Dom Pedro aí em cima! Explica aí, ô Pedro, o que você pretende aí, todo empinado, andando a cavalo em cima dessa gente? Era para ser uma homenagem aos povos indígenas? Essa história tá meio mal contada…
Olha só que estátua bonita! Importante! Imponente! Veio da França, sabia? Nossos índios são franceses. São, sim! E quem fez a história, afinal, foi Dom Pedro. Não foi? Foi ele mesmo quem fez o Brasil. Ele e a família dele, claro. Tradição, família e propriedade. Vem de berço. Vem de alhures. Vem daí. Isso, sim, é História. Feita por um homem de bem. E, ainda por cima, independente. Independente de tudo isso que tá aí.
Independente? Jura? Independente de quê? De quem? Depois ele não voltou pra Portugal?
Ah, mas lá ele era o Dom Pedro IV, né? E te digo mais, não durou nem um ano isso. Depois, ele voltou pra cá. A estátua dele, lá, nem índio tem. Nem cavalo! Anta e tamanduá, muito menos. Quem tem índio lá é o Padre António Vieira. Acredita que já vandalizaram a estátua desse homem de Deus? Pintaram uns coraçõezinhos ridículos nos índios, escreveram aquela baboseira de “descoloniza”. Imagina o absurdo, ter que gastar pra limpar a estátua! Não sei que problema tem, um monte de indiozinho agradecendo o Padre, deixando de ser pagão. Era pra glorificar de pé, isso sim. Você viu essa estátua? Feita com metal de verdade, retirado da Terra, mesmo… Coisa muito fina. Uma beleza, realista, não esse negócio que ninguém entende e chama de arte pra gastar dinheiro, não. Trabalho muito bem feito, precisa ver!
Qual trabalho foi bem feito? O da colonização? O da “independência”?

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Quando vi a chamada para a abertura da exposição Monumental, de Paul Setúbal, eu já tinha alguns desses diálogos mais ou menos escritos. Venho sendo confrontada, há anos, com a visão constante da opressora imagem de Dom Pedro I empunhando a carta constitucional de 1824, sua presença inexorável sobre a Praça Tiradentes, o cavalo empinado sobre uma ideia de Brasil “selvagem”. Essa monumentalidade “civilizatória” se ergue sobre três metros de granito carioca e mais seis de bronze, tudo isso que um dia foi montanha, morro, cerro, mundo. O granito e o bronze reconvertidos em pedestais elevam ainda mais a imagem do homem fardado, que impõe seu modo de vida às mulheres e aos homens indígenas que, abaixo dele, constituem uma natureza imaginada junto a animais que não servem como transporte de guerra. Anta, tamanduá, jacaré e tartaruga são fielmente retratados nesse monte de pedra e metal que, deslocado de suas entranhas, vem a ser imagem de uma História que se quer contar. Que se prefere contar. E re-contar. A História de quem conquista e domina, de quem coloniza e se auto-retrata para perpetuar, num ciclo infinito, essa mesma História. A História que “importa”. Uma História de reis, imperadores e seus cavalos.
Esse monumento, grande orgulho da estatuária da cidade, é considerado a primeira escultura pública do país. Projetado no Brasil por João Maximiano Mafra e executado por Louis Rochet na França, foi inaugurado na Praça da Constituição (atual Praça Tiradentes) no ano de 1862. Mas o que ele mostra, essa exaltação à figura histórica de Dom Pedro I sobre tantos símbolos do Brasil, como os rios Amazonas, Paraná, Madeira e São Francisco e suas representações por meio de indígenas e animais, é uma alegoria anacrônica de um ideal de país. Um país dominado por homens brancos em suas máquinas de guerra, que têem a seus pés a natureza e os povos originários como recursos a serem explorados, e que não aceita que o tempo desse mundo tem que passar. E que está passando.
Paul Setúbal nos ajuda, em Monumental, a fazer esse tempo passar para o outro lado dessa História. Saímos da Praça Tiradentes, da estátua equestre, de ônibus em direção à Colônia Juliano Moreira e ao Museu Bispo do Rosário, na Taquara, Zona Oeste do Rio. O trajeto de cerca de 30 quilômetros passava por regiões densas, industrializadas, desindustrializadas, ermas, pulsantes de vida da cidade. Fazer todo esse trajeto em silêncio, observando as mudanças na paisagem, me colocou em outro espaço-tempo, e me habilitou a chegar ao museu com os sentidos prontos para fazerem essa transição.
As casas, o acesso, o mato, a oferenda. A travessia estátua – ônibus – caminho – ruína – mato – túnel – museu – obra era permeada pelas diferentes escalas encontradas no percurso. Um rito, uma passagem. Deparar-me com “Monumental”, com Dom Pedro I de ponta-cabeça, espada em riste, num misto de estátua equestre com quadro representando as famosas margens do Ipiranga, no Museu do Bispo do Rosário, e, além disso, poder participar de seu esquartejamento, só pôde acontecer dessa forma porque foi percurso, trajeto, caminho.


Assim como o caminho de Paul Setúbal que, ao passar “Monumental” de performático a performativo, fez do esquartejamento daquele Dom Pedro invertido um momento único na exposição, naquele lugar remoto, de afastamento de pessoas consideradas pela sociedade disciplinar como inadequadas, descalibradas, desajustadas ao convívio social, encontramos o Dom Pedro de isopor, um misto de carro alegórico com paródia de si mesmo, em desequilíbrio, também ele, em meio a cachorros, galos, pombos e entidades, em meio ao descolamento da centralidade, precariamente preso e metodicamente esquartejado. Naquele momento, uma nova volta foi dada no parafuso. Cavalos, constituições, espadas, pedestais e bandeiras assumiram novas formas e significados.

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Quando vocês chegaram, eu já estava de cabeça para baixo. Sim, eu. Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Não tenho em minhas mãos a constituição, mas a espada que, diz a imagem, brandi heroicamente às margens plácidas do Ipiranga, dizendo ao povo que ficaria. Mas o cavalo está em cima de mim, e não eu em cima do cavalo. Vejo um pedestal, e não é de pedra. É de isopor. Onde já se viu? Cadê o granito, cadê o bronze? Isopor e tinta. O chão de cimento rachado. Um cachorro caramelo. Um galo. Sou bruscamente removido do meu pedestal. Dane-se. Não aguentava mais olhar pro chão, mesmo. Não nasci morcego, pra viver de cabeça pra baixo. Isso, agora pode me botar no lugar certo, de cabeça para cima, olhando para o céu, como meu posto exige. Não, não é assim. Está errado. Não é para eu ficar com a cara no chão. Meu pedestal está sendo desmontado? Onde vou ficar? Ah, ufa, ele está me colocando em cima do pedestal novamente. Espera. Esse serrote machuca. Não consigo mais ver o resto do meu corpo. Minha cabeça está mais uma vez no chão. Cadê o resto? Cadê meu corpo? E meu cavalo? Nunca senti o chão tão quente. Aos poucos, vejo minhas partes chegarem. Braços. Pernas. Pés. Minha espada. O flanco do cavalo. Sou desmonte e desajuste. Não sei ser assim. Nem espada tenho mais, nem pedestal. O escrutínio. Esse cachorro dormindo em mim, cheirando pedaços de mim. Onde estão a anta, a tartaruga, o tamanduá, o jacaré? Que história é essa que conto agora, nesse desconjuntamento? Monumental?


Fotos:
Todas as utilizadas nesta versão do texto aqui na Caju são de Paula de Oliveira Camargo.