Neste maio de 2023, a Caju retoma processos de escuta de outras iniciativas, preferencialmente coletivas, e publica, paulatinamente, os textos dos quatros curadores de Arte como trabalho: estratégias de sobrevivência, projeto iniciado durante a pandemia de Covid-19 e que chamou a atenção para o que deveria ser óbvio, mas, em um país elitista como o Brasil, está longe de ser: arte é trabalho. Cada profissional entre os artistas, curadores, críticos, museólogos, montadores, iluminadores, cenotécnicos, mediadores, pesquisadores e outras categorias da enorme cadeia produtiva envolvida na realização de exposições, livros, feiras e eventos artísticos é um trabalhador, trabalhadora, trabalhadori. Isso sem falar nos profissionais de empresas terceirizadas que trabalham em museus como em serviços de copa e limpeza, como seguranças ou bilheteiros, entre outras funções. Reconhecer a arte como trabalho é colaborar para que a precariedade que ainda orienta as relações profissionais no meio e no mercado de arte, hoje gigantesca, seja ao menos aplacada.
No primeiro ensaio da série, que será publicada concomitante a outros fluxos da revista, João Paulo Ovidio fala da proeminência dos artistas da Baixada Fluminense no projeto. Importantíssima para a economia do Estado do Rio, a região não dispõe de postos de trabalho suficientes em seu próprio território e sofre com grande campanha de depreciação na chamada “grande imprensa”, que só veicula informações ligadas a desamparo ou violência. Depois do texto de Ovidio, publicaremos os de Luana Aguiar, Carolina Rodrigues e Priscila Medeiros, também curadoras de Arte como trabalho.
+++
Nos últimos anos, minha aproximação com a Baixada Fluminense deixou de ser unicamente de moradia para se tornar uma investigação, uma vez que passei a me atentar para questões como território, pertencimento, direito à cidade, mobilidade urbana, relação centro-periferia, entre tantas outras que nos afetam diariamente/diretamente. Desde então, assumi o compromisso de trazer esse recorte para o meu trabalho, sendo a geografia um dos critérios de seleção que revela uma atitude política. A História da Arte é escrita não só a partir de recortes de tempo, mas também de espaços. Voltar os olhares para esse local tem me permitido melhor compreender os seus problemas, conhecer a história e reconhecer as lutas. Afinal, a tomada de consciência e o acesso à informação são fundamentais para alcançarmos a transformação desejada. Existimos, resistimos, insistimos e nunca desistimos! É chegada a hora de mostrar a nossa verdadeira potência; de sentir orgulho da trajetória, porque a estrada não é fácil, nunca é; de promover uma outra narrativa, mais diversa e inclusiva, sem estranhos decidindo por nós o que e como será dito; e, por fim, ocupar o protagonismo que é nosso por direito. É o momento de sair da posição de espectador-passivo e assumir o posto de fazedor-ativo.
Dos 15 artistas que integraram a exposição Arte como trabalho: estratégias de sobrevivência, 1/3 possuem ou possuíam, à época da inauguração, algum vínculo com a Baixada Fluminense, informação presente em suas biografias. Nascidos, criados, residentes ou oriundos dos municípios de Belford Roxo, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Já na curadoria, o quantitativo consiste na metade da equipe, pois além de mim, que sou de Duque de Caxias, também vale mencionar o nome da Luana Aguiar, que morou boa parte de sua vida neste território. E, apesar de não ter planejado esse quadro, no sentido que o projeto parte de decisões coletivas, tal composição representa minhas aspirações curatoriais. O processo seletivo me permitiu conhecer tantos outros nomes, infelizmente não contemplados devido limitações estruturais e orçamentárias.

Os números são importantes para atestar que não somos poucos e a expor que não somos fracos, basta ver o resultado. O desconhecimento, por sua vez, é um projeto que visa nos manter na posição de subalternos, à serviço da elite. Eles querem nossos braços e desprezam os cérebros, e nos vêem como corpos-máquinas, sem intelecto. Mas, para o azar deles, recusaremos esse lugar. Gostem ou não, viemos para nos expressar, seja por gestos, palavras ou criações. E eles terão que nos ver e ouvir.
A Zona Oeste do Rio de Janeiro, que, assim como a Baixada Fluminense, é marcada por diversos clichês e estigmas, teve um contingente significativo na mostra, com artistas de Campo Grande, Jacarepaguá e Realengo, além de Carolina Rodrigues, uma das curadoras, nascida e criada em Bangu. A Zona Norte, de onde vem a insulana Priscila Medeiros, também se faz presente. Entretanto, diferentemente dos casos anteriores, não vemos os bairros sendo citados em suas biografias, situação idêntica à de quem mora no Centro e na Zona Sul. Para mim, tal como para muitos artistas, falar do território de onde viemos é uma afirmação necessária, pois esse o marcador social explicita as desigualdades sofridas. Quantos equipamentos culturais temos por cá? E espaços de formação e produção crítica? Quais são as oportunidades de atuação profissional? Como ser artista e/ou curador sem ter estrutura e recursos para isso?
Realizar a exposição Arte como trabalho no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB), localizado na região central da cidade, não significa negar a periferia, ou preteri-la. Ao contrário, tal ação corresponde a dizer que podemos e devemos ocupar todos os espaços que julgamos imprescindíveis, sendo esse um exemplo. Fazemos isso por nós e por aqueles que não puderam estar aqui, pelos nossos mais velhos, pelas vítimas da violência e da COVID-19, por quem já não pode mais sonhar.
Baixada é estratégica, mas sofre com estigmatização e falta de emprego
Como pode nos faltar trabalho em uma região como a Baixada Fluminense, composta por 13 municípios, totalizando 3,7 milhões de habitantes, quantitativo que representa quase 20% da população do estado do Rio de Janeiro; ou a Zona Oeste, com 2,6 milhões de habitantes, o que corresponde a 40% dos cariocas, obrigando-nos a migrar? Quem não valoriza, perde! E quem sai perdendo não são as prefeituras e instituições, mas sim a população, essa sim é sempre a maior prejudicada. Dizer que não há interesse em artes é mentira, bem como alegar a falta de profissionais qualificados. O que existe, por outro lado, é a depreciação do passado e a desvalorização do presente. A imagem da violência e da pobreza difundida pela mídia destrói nossa autoestima, soterra os anseios. Quantos não se sentem desencorajados a seguir nessa área? Por vezes aflora o sentimento de que não somos bem-vindos, talvez por nossa função social de questionar as estruturas, provocar debates e requerer direitos.
Arte é bem mais do que decoração. É, antes de tudo, ideia. Não estamos aqui para agradar, nossos objetivos são outros. Junto a isso, a defesa de que é preciso “levar cultura” até esses locais é bastante problemática, visto que desconsidera o que é feito pelos e para os moradores. Não é de hoje que a periferia faz arte, porém, só agora começamos a ser vistos, a ter sucesso com as nossas estratégias. As conquistas são expressivas, mas ainda pequenas diante de nossos sonhos. Lutamos pela descentralização do acesso à cultura e o incentivo aos fazedores locais.
A rotina de quem se dedica à arte não é fácil. Quando se mora na periferia, menos ainda. É necessário acordar cedo, antes do sol, para sair de casa rumo ao trabalho e/ou faculdade, a muitos quilômetros de distância. A maior parte depende do transporte público, normalmente, é precário, superlotado e atrasado, sem mencionar a tarifa abusiva e os assaltos à mão armada. Se a pessoa estuda, demanda ter bolsa para se manter. No entanto, quem consegue ter uma depois de tantos cortes na Educação? Se trabalha, nem sempre está na área de formação, ou quando está, possui um salário péssimo e tem sua capacidade subestimada. Como viver de Cultura no Brasil se a mesma se encontra asfixiada? Enfrentamos dificuldades para produzir, não por falta de ideias, porque isso temos de sobra, mas por carência de espaços e recursos. O quarto vira ateliê e escritório, não se sabe onde um começa e o outro termina; os materiais e livros se amontoam nos móveis, no chão, onde der para ficar; dentro de um cubo, com poucos metros quadrados, instaura-se todo um universo da arte. Mas por que fazemos isso? O que nos motiva a continuar se há tantas razões para desistir? Talvez, o desejo de criar, porque esse é o nosso trabalho.

Nos museus do Rio de Janeiro, os funcionários da segurança, limpeza e manutenção são, em sua maioria, negros e negras, oriundos da Baixada Fluminense Zona Oeste. Já nos cargos de direção, gestão e curadoria, o quadro se mostra diferente, sendo formado majoritariamente por brancos da Zona Sul ou até mesmo de fora do país. E o mesmo ocorre nas exposições e coleções, onde nossa presença é mínima, ou, quando não, nula. Como pode o Brasil ter uma população majoritariamente negra e isso não refletir nas equipes e nos acervos? Logo, é de responsabilidade das instituições promoverem ações que visem mitigar as desigualdades anunciadas, sobretudo porque ainda em 2022, lamentavelmente, a herança colonial está arraigada em nossa sociedade. Para os racistas, a presença cada vez maior de artistas e curadores negres não passa de uma “moda”, para nós, isso se chama reparação histórica. E como ouvi recentemente de Marcelo Campos: “Não é moda porque é luta, se fosse moda seria conforto, e não é confortável para nenhum de nós fazer o que a gente faz, estar onde a gente está”. Nada nos é dado, tudo é conquistado.
===
Por fim, dedico esse texto a Paulinho, meu pai, que desde cedo manifestou sua paixão pela marcenaria, trabalhou na produção e restauração de móveis, contudo, precisou renunciar seu ofício a fim de prover o sustento da família. Somente há pouco, após se aposentar, conseguiu retomar o fazer que tanto lhe regozija. Certamente, ouvir seus relatos desde a infância me contagiou, levando-me até o caminho da arte. Até posso não ter aprendido a ser marceneiro, todavia, recebi lições valiosas sobre esperança, força e trabalho.
Sigamos na luta!!!