Beira de mar
Beira de mar
Beira de mar na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor
(Joia, Caetano Veloso, 1975)

Escrevo essas mal traçadas, caro leitor, nas bordas secas de um guardanapo de papel. E não foi força do hábito não, acredite. Quando recebi das minhas queridas editoras deste Caju virtual a saborosa missão de escrever sobre o caju concreto – puro pedúnculo floral piriforme saborosamente carnudo e seu nutritivo fruto oleaginoso em forma de castanha -, optei por iniciar-me nas histórias dessa complexa maravilha botânica genuinamente brasileira a partir de um território conhecido. Um pouco de zona de conforto para estudar o inimigo, e só depois atacá-lo de frente. Por isso trouxe livros, revistas, recortes e outros alfarrábios cajuísticos da Euclides da Cunha, minha biblioteca favorita no centro do Rio, direto para a mesa treze aqui da Barraca da Chiquita, na Feira de São Cristóvão, que tem no caju uma de suas especialidades. E cá estou eu: pesquisando enquanto beberico um caju-amigo e tomo notas no guardanapo. E já começo afirmando: caju-amigo é um dos melhores drinques do mundo. Doce, refrescante, nutritivo, instigante. E não é apenas por obra e graça da Chiquita, nem mesmo do Guilhermino, o genial barman do extinto Pandoro, bar paulista onde o coquetel criou fama nacional nos anos 70. É apenas e tão somente porque o caju… O caju… O caju é foda, caro leitor.

Foi nos fins do século 19 que os boêmios de Fortaleza se aperceberam dos superpoderes do caju como mascarador do cheiro e do gosto do álcool. Mastigá-lo junto com a cachaça, pois, era a solução ideal para chegar em casa após uma tarde de saliências etílicas sem despertar a ira da patroa. Surgia então o caju-amigo, cúmplice fiel das bebedeiras mais escondidas da nossa sociedade patriarcal. Já nos anos 50, a fama desceu ao Sul Maravilha e tomou forma definitiva no Clube dos Cafajestes. O mais badalado baile anual da turma de Carlinhos Niemeyer, Mariozinho de Oliveira e Ibrahim Sued chamava-se Festa do Caju-Amigo e era regado por batidas e drinques à base da fruta. Estremecia a alta sociedade. Consta que, na edição de 1958, a atriz Jayne Mansfield – rival número um de Marilyn Monroe na época – dançou nua sobre as mesas do nightclub Au Bon Gourmet, em Copacabana. Se é verdade que Marilyn dormia só de Chanel Número 5, naquela noite Mansfied desabou na suíte presidencial do Copacabana Palace envolta na túnica transparente do mais puro perfume de caju.
Mas isso são tempos modernos. E a estrada do caju é muito, muito mais longa. Mais de um século antes do primeiro europeu dar aqui com os costados para tirar sangue dos troncos de pau-brasil, inaugurando os ciclos de exploração de nossas matas e cascatas, era o caju a moeda nacional de Pindorama. Do pedúnculo – a parte carnosa, saborosa e doce, plena de ferro, fibras, aminoácidos e vitamina C – os tupis da etnia tremembé, primeiros habitantes da costa do Ceará, extraíam não só a sua alimentação básica do dia a dia como também o combustível para os seus próprios “bailes do caju-amigo”. Nas cerimônias do Torém, homens, mulheres e crianças tremembés se conectavam com os ancestrais na balada do Mocororó, uma beberragem à base de álcool fermentado do caju. Que existe até hoje na região, diga-se.
Já o fruto verdadeiro, a parte menor, mais escura e impossível de ser comida crua, já tinha sua amêndoa cuidadosamente retirada, assada e salgada por todas as tribos da costa nordestina antes da chegada dos europeus. A castanha de caju era tão valiosa e importante no Brasil pré-cabralino que, por causa dela, vivemos nossas primeiras guerras. Tribos que não tinham o privilégio de viver no litoral invadiam todo ano a área dos cajueiros, em busca do fruto e suas castanhas. Naturalmente, eram recebidas a flecha, borduna e zarabatana.
A precisão com que os cajueiros frutificavam sempre ao mesmo tempo, e apenas uma vez ao ano, ajudou nossos ancestrais a sofisticar o conceito de medição de tempo. Uma castanha de caju (ou “acayu”, em tupi) guardava o sentido de passagem de um ano. Por isso, era costume nas tribos do nordeste que cada índio separasse uma castanha de cada colheita e a guardasse numa cabaça pessoal, em sua oca. A soma das castanhas na cabaça eram, portanto, os seus anos de vida. Nosso calendário mais ancestral foi também o mais poeticamente brasileiro. Até hoje é comum, do Piauí ao Sergipe, ouvir gente mais idosa trocando anos por cajus ao informar a idade.
Ao contrário do que se poderia esperar, a cultura do caju não se extinguiu com a chegada dos portugueses. É verdade que diluiu-se com a escravização dos índios e os interesses econômicos que se sucederam – do pau-brasil à cana, ao ouro e ao café. Mas manteve-se enraizada nas tradições e no gosto popular nordestino – tão importante quanto a mandioca. Hoje, o uso da fruta é ainda mais vasto e surpreendente. Da carne de caju faz-se tudo: doce, patê, estrogonofe, omelete, hambúrguer e até pizza. O sumo gera muito mais que suco: dali vem a cajuína, o genuíno refrigerante nacional, orgulho da indústria do Piauí, que abriga nada menos que 120 fábricas do produto. A castanha é uma das commodities brasileiras mais valorizadas no mundo.
Só os Estados Unidos importam mais de 25 mil toneladas por ano, em média. E o que pouca gente sabe é que da castanha extrai-se também um líquido curioso, chamado LCC (Líquido da Casca da Castanha), de sabor cáustico e intragável, corrosivo e inflamável, mas com mil e uma utilidades para as indústrias química e farmacêutica. Na Segunda Guerra Mundial, era usado pela indústria bélica americana como isolante para cabos de alta tensão. Hoje, pode ser encontrado em tintas, lubrificantes, esmaltes, inseticidas e remédios.
Mas é na cultura que o caju é ainda mais intrínseco à identidade brasileira. Suas origens ancestrais inspiraram autores de todas as épocas. O caju está na primeira refeição que Iracema oferece a seu futuro amor Martim, na obra-prima de José de Alencar. Está na descrição primorosa que Euclides da Cunha faz da geografia da região de Canudos, no seminal Os Sertões. Mas está, principalmente, no âmago da complexa personalidade modernista de Macunaíma. Ao armar sua rede à sombra dos cajueiros para dormir, comer e “bocejar cajus”, nosso herói sem nenhum caráter exala toda a força de sua brasilidade travestida de preguiça. Segundo a pesquisadora da USP Jackeline Fernandes de Paula, autora da tese As várias faces do Brasil: a imagem do caju em Macunaíma, Mário de Andrade usa a complexidade organoléptica da fruta – doce, suculenta e aromática, mas também travosa, capaz de deixar um certo amargor na boca – para desenhar a personalidade contraditória de seu protagonista e, quem sabe, de todos nós brasileiros.

Na pintura, o caju brilhou no pincel de Debret. Na doce e melancólica aquarela Negra tatuada vendendo cajus reside talvez o primeiro registro pictórico em alto nível sobre a importância da fruta no cotidiano do Brasil do começo do século 19. E na música e na poesia? Aí caju dá mais que chuchu na serra. No cordel abunda, em versos de mestres populares como o pernambucano Adelmo Vasconcelos, falecido ano passado, e Dalinha Catunda, titular da cadeira número 25 da ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel, cuja sede, curiosamente, fica em Santa Teresa, no Rio de Janeiro). Na MPB, só Caetano fez duas para o caju: Joia, nos versos que abrem esse artigo, e a célebre Cajuína.
Em Morena tropicana, Alceu Valença exalta a beleza feminina com consistência de carne de caju, entre outras analogias botânicas. Mas é no seu Soneto ao caju que Vinicius de Moraes exprime com precisão a íntima relação da fruta com o erotismo e o prazer, ao afirmar sem travas na língua: “Amo vê-lo agarrado ao cajueiro / À beira-mar, a copular com o galho / A castanha brutal como que tesa / O único fruto – não fruta – brasileiro / Que possui consistência de caralho / E carrega um culhão na natureza”.
Com tantos predicados, o caju não pode – e nem deveria mesmo – ser uma fruta só nossa. Depois de quase 500 anos de exclusividade, o Brasil viu, na segunda metade do século 20, o caju criar asas e ganhar o mundo. Hoje, estão no Vietnã e na Índia as maiores plantações (nós somos só o terceiro produtor), e já lá se vão nove cajus em que as edições anuais do Festival Mundial do Caju ocorrem apenas em países africanos. A décima, em Guiné-Bissau, ocorre já, já – entre os dias 19 e 22 de setembro. O ponto alto do evento será uma palestra sobre as mais recentes inovações na tecnologia de beneficiamento do caju. Mas atente: a palestra será dada por dois empresários… brasileiros.
É que o caju, caro leitor, pode até largar do Brasil, mas o Brasil nunca larga dele. E que seja assim para sempre. Com o caju concreto, puro pedúnculo floral, e com esse jovem Caju virtual. Que já nasce com asas.
Autor
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Dândi etílico, cronista de botequim, autor do projeto A volta ao mundo em 80 bares.
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Que texto – como não podia deixar de ser – saboroso!
Obrigada, Ronaldo. Nós e o querido Juarez brindamos ao seu comentário com um copo geladinho de caju amigo!