Brasília é muito mais do que o Plano Piloto, complexo arquitetônico e urbanístico modernista composto pelos famosos prédios públicos que sediam instituições da administração pública federal e pelo peculiar planejamento urbano, reconhecidos como patrimônio pela Unesco. Brasília é também composta por diversas regiões administrativas, antes chamadas de cidades-satélites, muitas das quais carregaram durante certo tempo a pecha de serem “invasões”, fruto de processos de ocupação desordenados e irregulares protagonizados, inicialmente, pelos candangos, trabalhadores da construção civil que ergueram a cidade. Não só a demografia, mas também a cultura e as artes marcam especificidades e singularidades dessas regiões, implodindo a ideia de satélite. De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio de 2018, Ceilândia é a maior cidade do Distrito Federal em termos populacionais, ultrapassando outras regiões administrativas como Samambaia, Plano Piloto e Taguatinga. Além disso, suas relevantes produções culturais, especialmente no rap, no cinema e nas artes visuais, colocam em perspectiva noções antiquadas de “centro” e “periferia”.
Essas singularidades representam contrastes de diversos tipos entre essas regiões e o Plano Piloto. Além da ordem versus desordem urbana, que tem como referência o planejamento modernista de Lúcio Costa, as regiões também apresentam fossos de ordem econômica, com implicações que se desdobram em representações de classe social e racial, sobretudo. Essa questão foi abordada foi no cinema por Ardiley Queirós em Branco sai, preto fica (2014). O filme lança mão de elementos de ficção científica para mostrar uma Ceilândia separada por um fosso – econômico, racial – do Plano Piloto, que limita o direito de ir e vir e cujo atravessamento constitui uma saga arriscada para aqueles que tentam empreendê-la.
Assim como Queirós, o artista visual Gu da Cei, também natural da Ceilândia, tem refletido sobre como instituições, discursos e visibilidades se organizam e operam poder para instituir diferenças entre essa região administrativa e o Plano Piloto. Em setembro de 2021, ao lado da Caixa D’ Água da Ceilândia, importante ponto de referência, de turismo e tido como identitário da região, Gu instalou uma placa na qual se podia ler “Aqui cabe uma praça”. No mesmo período, o artista fez uma intervenção na qual projetava sobre a mesma Caixa D’Água enunciados que reivindicavam a condição de invasores – “Somos invasores”, “Isso é uma invasão” – e outros que rejeitavam essa ideia – “Não somos invasores”, “Isso não é uma invasão” – produzindo uma disputa sobre os sentidos desse termo.

Outro enunciado nessa mesma intervenção, “O Brasil é uma invasão” (no cabeçalho do texto), nos lembra que questões relacionadas à ocupação e ao uso de terra, tanto em espaços urbanos como também nos rurais, são problemas nacionais engendrados por nossa história e cultura colonialista. Rotineiramente presenciamos malabarismos e torções, jurídicos e na linguagem, que nos acostumaram a reconhecer aqueles que, evidentemente atravessados por questões de classe e raça, podem ocupar ou não, assim como aqueles que podem ser violentamente despejados de seus lugares e quais não podem. Desse modo, estabelece-se diferentes tipos de “invasões” e “invasores”, alguns considerados legítimos, e outros acusados, pelos poderosos, como criminosos, arruaça ou levantes indesejáveis.
Voltando ao contexto local, Gu chama atenção para a Campanha de Erradicação de Invasões realizada em 1971 em Brasília, que removeu 82 mil pessoas para a Ceilândia, região localizada a aproximadamente 30 km do Plano Piloto. A remoção forçada teve profundo impacto na vida desses sujeitos, distanciando-os de seus locais de trabalho, de lazer e de afeto. As circunstâncias dessas remoções, cenas vistas ainda hoje em Brasília, nos dão pistas sobre o porquê de alguns conseguirem legalizar suas terras e outros não.
Reflexão sobre sistemas de vigilância e comunicação
A escolha do laser para a projeção na Caixa D’Água, segundo o próprio artista, é uma referência aos recentes levantes populares, em lugares como Hong Kong e Chile, que utilizaram esse recurso para burlar sistemas de vigilância e de reconhecimento facial. A “anti-vigilância” é uma questão fundamental em outros dos seus trabalhos, realizadas a partir de imagens do próprio Gu registradas por câmeras de segurança interna, equipadas com sistemas de reconhecimento facial, instaladas no transporte público da cidade, especialmente em ônibus. Essas imagens são obtidas pelo artista após solicitação via Lei de Acesso à Informação, gesto que de partida pode ser compreendido enquanto uma performance na qual Gu se reapropria de sua imagem, a princípio obtidas à sua revelia por dispositivos de controle e segurança, e passa a fazer delas um uso privado, artístico, estético e político. Imagens produzidas para não serem vistas são artisticamente processadas e trazidas para o campo do sensível, como em Bio bio (2018). Transformadas em adesivos, essas imagens voltam para o espaço público, eventualmente para os próprios interiores de ônibus, como intervenção urbana, carregando consigo a espessura do gesto artístico.
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Em Passa em Sobradisney? (2019) – o título é uma referência a uma das maiores regiões administrativas de Brasília, Sobradinho, e à insólita promessa do então governador Ibaneis Rocha (MDB) de trazer um parque temático para o Distrito Federal – Gu empreende o mencionado procedimento burocrático-artístico e recupera uma imagem captada pelas câmeras internas de um ônibus na qual aparece na roleta de entrada vestindo, provocativamente, uma fantasia de Mickey à la Carreta Furacão, inclusive com o rosto totalmente encoberto. A atitude subversiva evoca o questionamento de Hal Foster sobre como artistas podem rastrear e desafiar o poder que hoje está relacionado à produção e uso de dados e imagens “coletadas, buscadas, vigiadas e manipuladas” por corporações, governos, polícias e seguradoras.
Gu da Cei dialoga com trabalhos de artistas e cineastas que têm, nos últimos anos, nos chamado atenção para as especificidades dessas imagens produzidas em contexto de controle e segurança, e que nos provocam a pensar sobre suas problemáticas e sobre o fato de serem de outra ordem. Não falamos mais de imagens como cultura do espetáculo, aquelas que os herdeiros da teoria crítica reconheceram como produtoras de desejos e sentidos fortemente condicionados ideologicamente, exacerbando representações alienantes por meio da reprodução de simulacros. Diferentemente, falamos agora sobre imagens que pretendem ser monopólio de governos e corporações, produzidas e classificadas por algoritmos que decodificam o corpo social a partir de pressupostos autoritários, arbitrários e racistas.

Voltando à placa instalada por Gu, o imperativo “Aqui cabe uma praça”, enunciado de forma anônima, acaba se constituindo como uma misteriosa sublevação por parte do corpo coletivo da cidade, por parte daqueles que parecem tomar consciência das possibilidades do ambiente urbano e passam a desejar uma outra cidade, uma outra configuração e uma outra escala, mais afetiva para as dimensões dos corpos humanos. Potente ao imaginar outra cidade possível, a placa e aquilo que ela sugere amedrontam aqueles que estão satisfeitos com os apartamentos sociais, econômicos e raciais impostos pela privatização selvagem do espaço urbano e de seus equipamentos, o que fica explícito no gradeamento que circunda e evita a circulação social em torno da Caixa D’Água.
Ao imaginar uma reconfiguração urbana, Gu se associa a uma forma de enquadramento do real que está para além da negatividade e do niilismo, isto é, ao invés de denunciar mazelas, enquadramentos ideológicos “ocultos” e reiterar a impossibilidade de concebermos a realidade e a verdade, o artista passa a compreender o mundo enquanto aquilo que Hal Foster chama de “construção frágil”. É por isso que, ao invés de afirmar “o Brasil é uma invenção”, o artista afirma “o Brasil é uma invasão”. Não trata-se de “desconstrução”, mas de reconstrução, de questionar o monopólio de governos e de corporações sobre a invenção e gestão do real e do visível. Gu reivindica para si e para a arte a possibilidade de, não só inventar, mas também de dar visibilidade para o mundo, a partir de procedimentos e epistemologias que hackeiam o autoritarismo e o quantitativismo do complexo governos-corporações-algoritmos. Visibilidade essa que coloca em xeque margens, fronteiras e fossos.
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Referências bibliográficas
FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
____. O que vem depois da farsa? São Paulo: Ubu, 2021.
Autor
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
Relacionado
Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.